A Fronteira da Prudência

“Faça sempre o melhor, prepare-se para o pior —  então, confie no Eterno e você alcançará vitória.”

Provérbios 22: 3, Bíblia “A Mensagem”, Eugene H. Peterson.

Imagem de Heidelbergerin por Pixabay

Parte I – Turismo em Canaã

Os 12 escolhidos aguardavam apreensivos. Afinal, eram conhecidas as histórias sobre os povos bárbaros que habitavam aquelas planícies. Os contornos da magnífica paisagem podiam ser avistados ao fundo sob a luz do sol poente. Sobre eles, o som das rajadas de vento parecia anunciar o iminente avanço da expedição. 

Para chegar até as montanhas e observar as características da região, era necessário desafiar a extensão e aridez do terreno que os separava, e isso poderia levar vários dias. O objetivo do grupo era explorar toda a área, colhendo informações sobre seus aspectos geográficos e detalhando os traços marcantes de seus habitantes. Para o povo, era importante saber, antes de enfrentá-los, se eram muitos ou poucos, fortes ou fracos. Saber se viviam em vilas sem muros ou em edificações fortificadas. Saber se aquela terra, de fato, como Deus havia dito, era “uma terra boa e ampla, terra da qual mana leite e mel”.  

O Retorno

Depois de 40 dias, tenacidade testada e terreno reconhecido, eles retornaram exitosos e informados. O relato confirmava o que se esperava. A terra era excelente, notadamente fértil graças às águas do rio que permeava todo o vale. Os vistosos frutos que trouxeram eram a prova cabal. Mas havia uma informação que não poderiam ignorar: os habitantes que encontraram eram extremamente fortes e suas cidades eram guardadas por muros intransponíveis. Na verdade, para alguns dos exploradores, eles pareciam gigantes.  

Após relatarem o que viram, um deles se levantou e bradou: “Levantemo-nos e marchemos! Não há do que ter medo! Somos fortes o suficiente para derrotá-los! Acaso não foi o Senhor, o Deus de Israel, quem nos prometeu esta terra?” Porém, a maior parte do grupo não demonstrava a mesma confiança: “Não teremos chance alguma contra estes povos! Seus homens são muito mais fortes do que nós! Serão impiedosos, e todos morreremos!”

Confirmado o perigo, surgiu um impasse. Temendo por suas vidas, os israelitas hesitaram. “Talvez fosse melhor abortar a missão”. Naquele momento, as suposições derrotistas ofuscavam cada uma das vitórias asseguradas por Deus no deserto. Mesmo diante de todos os sinais que haviam presenciado; mesmo sabendo que aquela era a Terra Prometida por Deus, covardemente se recusaram a prosseguir. Sua fé, mais uma vez, fraquejava.

A história prossegue. Moisés intercede pelo povo e Deus, graciosamente, dispensa seu perdão. Mas a descrença tem consequências. Regras sobre quem entraria na Terra Prometida são estabelecidas. Somente mais tarde, o exemplo de fidelidade e obediência de Josué e Calebe prevaleceria e a marcha dos israelitas rumo a conquista de Canaã seria retomada. 

Turismo de Aventura

O trecho em paráfrase faz parte da narrativa registrada nos capítulos 13 e 14 do Livro dos Números, quarto livro da Torá. Ali, encontramos o momento em que 12 homens são escolhidos para espiar a terra de Canaã antes de sua ocupação. O curioso, e até engraçado, é que o verbo original traduzido por “espiar” é L’Tur —  לָתוּר —  que significa “viajar com intuito de explorar”.

Alguns estudiosos até acreditam que o termo tenha sido precursor da palavra portuguesa “turismo”. Portanto, eles não seriam “espiões” como a palavra “espias”, normalmente utilizada, nos induz a acreditar. Eles seriam “turistas”, ao menos em termos semânticos minuciosos.

Contudo, imagino que para uma tradução atual a palavra “turismo” não fosse a mais apropriada. Talvez fosse mais adequado um termo contemporâneo, um termo que descrevesse melhor o que estes 12 aventureiros, de fato, fizeram. Que tal o termo “turismo de aventura”, tão em voga atualmente? Brincadeiras à parte…

Parte II – O Justo Viverá pela Fé

Mas há, ainda, outro aspecto do registro bíblico que somente a análise do texto original pode evidenciar. A expressão hebraica שלח לך Sh’lach Lechá adotada pelo autor, não significa propriamente enviar. Para o verbo enviar puro, o termo comumente utilizado, לשדר, é destacadamente distinto. De acordo com a melhor doutrina sobre a Torá, a expressão Sh’lach Lechá significa, na verdade, enviar para si.

Para entender a distinção, veja o relato do episódio na tradução da “Bíblia de Genebra”, versão Almeida Corrigida. Livro dos Números, 13: 2.  

Envie homens que espiem a terra de Canaã, que eu hei de dar aos filhos de Israel; de cada tribo de seus pais enviareis um homem, sendo cada um príncipe entre eles.” 

Agora, veja a tradução da mesma passagem na versão da Completa Bíblia Judaica: 

Envie para si homens que explorarão a Terra de Canaã, que eu estou dando aos filhos de Israel. Você deve enviar um homem para a tribo de seu pai; cada um será um chefe no meio deles.”

Se a primeira impressão é a de que o sentido das expressões é o mesmo, a distinção trazida pelo texto hebraico parece ter uma importante razão. No livro de Deuteronômio, 1: 19-22, descobrimos que a ideia de enviar espias para explorar Canaã parte do povo de Israel. Mas como a terra já havia sido prometida por Deus, sua conquista em nada dependeria das circunstâncias que seriam encontradas, fossem elas favoráveis ou adversas. Veja como a Bíblia “A Mensagem” relata o episódio:

“Então, partimos do Horebe, na direção da região montanhosa dos amorreus, atravessamos aquele deserto imenso e assustador que vocês viram – tudo sob a direção do Eterno, o nosso Deus – e, por fim, chegamos a Cades-Barneia. Ali, fiz este pronunciamento: “Vocês acabaram de chegar à região montanhosa dos amorreus, que o Eterno, o nosso Deus, nos deu como herança. Entendam isto: a terra que está diante de vocês é um presente do Eterno. Mexam-se e tomem posse dela agora! Ela foi prometida a vocês pelo Eterno, o Deus de seus pais. Não tenham medo nem fiquem desanimados”. Mas, então, vocês vieram me sugerir: “Vamos enviar alguns homens à nossa frente, em missão de reconhecimento da terra, para que nos façam um relatório, para sabermos a melhor maneira de tomá-la e o tipo de cidades que vamos encontrar.”

Como Deus conhecia as razões dos israelitas, não se opôs ao pedido. Em sua sabedoria, porém, autorizou a expedição investigativa para que a fraqueza dos israelitas fosse, a eles mesmos, exposta. Quem permaneceria fiel?

Pode ser que a ansiedade inerente a situação tenha tomado conta dos israelitas fazendo-os acreditar que a obtenção de mais informações lhes traria alguma segurança, algum conforto. Mas as angústias e incertezas do povo de Israel em relação à ocupação da nova terra, não se arrefeceriam pela simples análise circunstancial. Ao contrário, era pela perseverança diante daquelas mesmas circunstâncias que a fé de Israel se fortaleceria e eles entrariam em Canaã.

Fronteiras da Prudência

A Bíblia nos ensina a ter prudência, a nos ocuparmos dos preparativos apropriados para atingir nossas metas e objetivos. Mas a prudência tem suas limitações. Embora ela seja útil para nos ensinar a agir com precaução, poupando-nos de muitos males, em muitos casos, a prudência não é capaz de fornecer a palavra final. Por isso, nossos atos responsivos não devem ter como fundamento último a análise dos fatos e das probabilidades, mas, sim, a fé inafastável em Deus e suas promessas.  

Como nos ensina o autor da epístola aos Hebreus:   

Por isso, não abram mão da confiança que vocês têm; ela será ricamente recompensada. Vocês precisam perseverar, de modo que, quando tiverem feito a vontade de Deus, recebam o que ele prometeu; pois em breve, muito em breve “Aquele que vem virá, e não demorará. Mas o meu justo viverá pela fé. E, se retroceder, não me agradarei dele”. Nós, porém, não somos dos que retrocedem e são destruídos, mas dos que creem e são salvos.” Hebreus 10: 35-39, NVI.

Para nós, cristãos, a palavra final vem da fé, esta sim, base sólida das nossas convicções; não vem dos fatos, não vem das situações. O que o povo de Israel não havia percebido era que a posse da Terra Prometida deveria ser um ato de fé, e não meramente um ato de deliberação militar.  

Parte III – A Restrita Relevância das Conjecturas

Sabemos que, em certa medida, a realidade percebida — não a realidade em si — depende do ponto de vista do observador. Ora, sob essa premissa, a fé do que observa pode modificar sua resposta à realidade percebida. Josué e Calebe avaliaram a situação não somente pela perspectiva das circunstâncias, mas sob a perspectiva da fé e, por isso, se imbuíram de coragem e foram honrados por Deus com a entrada na Terra Prometida. 

Exatamente como ocorreu com o povo de Israel, muitas vezes nossas imprecisas conclusões colhidas das circunstâncias, revelam nossos medos nos fazendo desistir de propósitos legítimos ou comprometendo nossas decisões morais, antes mesmo de se consumarem. Como disse, certa vez, o poeta de Stratford:

“Nossas dúvidas são traiçoeiras, e nos fazem perder o bem que poderíamos ganhar por medo de tentar.” Willian Shakespeare.

A imperfeição de nossas previsões quanto ao futuro, as quais, muitas vezes, decorrem de nossas análises afoitas para encontrar explicações e inter-relações a cada sequência de eventos, é generosamente ilustrada por uma conhecida história da tradição chinesa.

O Cavalo e o Sábio

Conta-se que um sábio possuía um cavalo árabe muito especial e cobiçado por todos os seus vizinhos. Tinha também um filho para quem desejava deixar o cavalo como herança. Todos faziam ofertas para comprá-lo, mas ele, decidido, se negava a vendê-lo.  

Um certo dia, o cavalo fugiu. Os vizinhos vieram e lhe disseram:

— Viu… se você tivesse vendido o cavalo teria sido melhor!

Ele, porém, reagiu:

— Pode ser que sim… pode ser que não.  

Passado algum tempo, o cavalo, que se tornara líder de uma manada de cavalos árabes, retornou com mais dezenove cavalos. Os vizinhos novamente vieram até o sábio e disseram:

— É, foi muito melhor não ter vendido o cavalo!

Ao que ele respondeu:

— Pode ser que sim… pode ser que não.  

Não tardou muito seu filho, que passou a montar o cavalo, sofreu uma queda e quebrou a perna em quatro lugares diferentes. Os vizinhos lhe prestaram outra visita e disseram:

— Veja você, certamente teria sido melhor vender o cavalo!

O sábio retrucou:

— Pode ser que sim… pode ser que não.  

Passado mais algum tempo, irrompeu na China uma grande guerra e todos os jovens foram convocados e morreram todos os filhos dos vizinhos. O filho do homem sábio, por causa de sua perna quebrada, não havia sido convocado e foi o único sobrevivente entre os jovens da região. Pesarosos, os vizinhos visitaram mais uma vez o sábio e disseram:

— Você realmente fez muito bem em não ter vendido o cavalo!

O sábio, impassível, mais uma vez respondeu:

— Pode ser que sim… pode ser que não. 

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Visão” Além do Alcance

Como os vizinhos do sábio, somos, muitas vezes, inevitavelmente afoitos. É comum querermos encontrar uma relação direta entre os eventos na tentativa de lidar com o imprevisível. Mas perceba que na história, a sucessão de eventos altera, pari passu, o que pensam os vizinhos sobre o acerto, ou desacerto, da decisão inicial do sábio de não vender seu cavalo.

Mas a atitude do sábio não é a de querer controlar os eventos. Ele sabe que, muitas vezes, as coisas não carregam a simplicidade que aparentam. A complexidade das inter-relações causais da existência exige ações amparadas em convicções. Os acontecimentos podem parecer bons ou ruins em um dado momento, mas nossas convicções, baseadas na fé, são tudo o que realmente possuímos. 

O povo de Israel abandonou suas convicções sobre a conquista da terra por Deus prometida e deu voz à sua própria imaginação. Ofuscada a promessa, eles se esquivaram do plano inicial por medo do que poderiam encontrar pela frente. Desconfiança e temor, fraqueza e deserção; juntos, sobrepujaram a fé.

Porém, o justo viverá pela fé.

“Olhe para aquele homem inchado de presunção – cheio de si, mas de alma vazia. Mas a pessoa que anda direito diante de Deus, com uma fé sincera e firme, essa vive plenamente, está realmente viva.” Habacuque, 2: 4, Bíblia “A Mensagem”.

Na vida cristã pura e simples, prudência e fé fazem parte de uma mesma realidade e coexistem sem contradições. No que concerne ao que podemos ver, medir e analisar, a prudência é eficaz. Por outro lado, para o que vai além dos olhos, além das percepções, além das probabilidades, a fé é muito mais sagaz.

Por fim, vale mencionar a excelente e contemporânea tradução que a Bíblia “A Mensagem” nos traz do primeiro verso, capítulo décimo primeiro, da carta aos Hebreus:

“O fato essencial da existência é que esta confiança em Deus, esta fé, é o alicerce sólido que sustenta qualquer coisa que faça a vida digna de ser vivida. É pela fé que lidamos com o que não podemos ver”.

Antigo cartão postal de Jericó no final do século XIX ou início do XX

“Por um ato de fé, os israelitas marcharam ao redor das muralhas de Jericó durante sete dias, e as muralhas caíram.”

Hebreus, 11: 30, Bíblia “A Mensagem”.

5 Comments

  1. LUCIANO NUNES

    Excelente!!!

    • Oi Lu,
      Muito obrigado!
      Saiba que qualquer sugestão temática para os próximos posts é muito bem vinda.
      Abraços!

  2. Cristiano Ledo

    Texto inspirador!

  3. Ester Duarte

    Meu caro Ju,
    Sempre soube que você era um filósofo, que gostava de pensar nas grandes, e também nas pequenas, questões da vida. Impressionei-me, contudo, com a sua capacidade de nos entreter tão profundamente em um texto cujo tema não é nada simples.
    E o que dizer da sua reflexão??? Tenho certeza que começou servindo a você, serve a mim agora e servirá a muitos outros que tiverem o privilégio de ler.
    Continue nos agraciando com as suas reflexões, sempre ponderadas, firmes ao mesmo tempo, sem nunca perder a ternura!

    • Cara Ester,

      Confesso que seu comentário me sensibilizou; seus elogios me alegraram; sua atenção me motivou. A experiência com o blogue tem sido de muito entusiasmo e satisfação. Aquele prazer de expor parte de nós e de nossos pensamentos em conversas com os parentes, amigos e colegas, era algo muito raro depois que viemos para os Estados Unidos.

      Agora, com essa ‘revista particular’, é como se houvesse uma fileira de ideias e impressões, sobre vários assuntos, esperando uma oportunidade de se ‘manifestar’. São mensagens como a sua que me incentivam a promover e divulgar os textos a um número cada vez maior de pessoas.

      Finalmente, não se esqueça de nos enviar ideias interessantes para textos futuros, pois serão muito bem vindas.

      Muito obrigado e um grande abraço!

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