“Para saber se alguém é realmente inteligente, é preciso testar sua capacidade de conservar no pensamento duas ideias opostas e, ao mesmo tempo, manter sua capacidade de analisá-las.”
F. Scott Fitzgerald
Parte I – Fatos ou Estórias?
A indulgente imaginação coletiva se comporta atualmente como aquele torcedor angustiado que ao escutar no rádio o exímio narrador esportivo, acredita plenamente que as imagens formadas por sua imaginação correspondem fielmente ao que se passa dentro de campo.
Contudo, aqueles que já tiveram a oportunidade de acompanhar pela televisão as imagens de um jogo de futebol e, ao mesmo tempo, escutar a narração de seu radialista predileto, sabem que a versão que vem do rádio, embora muito mais empolgante, nem sempre coincide com a realidade.
Não podemos nos esquecer, entretanto, que nesta primeira quadra do século, cada indivíduo é desafiado a ampliar seu rigor crítico diante de tudo o que observa, principalmente quanto ao conteúdo das informações e notícias que circulam nas diversas mídias sociais.
Além disso, é crucial que as pessoas compreendam que à medida que os instrumentos disponíveis ao exercício de nossa liberdade de expressão avançam, ampliam-se, pari passu, nossos deveres e responsabilidades como cidadãos. Uma inverdade dita ao pé do ouvido dificilmente terá o mesmo impacto daquela divulgada para milhares de pessoas instantaneamente por meio de uma plataforma digital.
O problema é que na ausência de qualquer debate minimamente respeitoso e orientado sobre temas relevantes, grande parte do público acaba confiando em ‘narrações’, ou narrativas, difundidas por seu ‘locutores’ preferidos sem perceber que, muitas vezes, o intuito principal do comunicador não é propriamente informar – nos sentido limpo do termo – mas ‘tentar’ moldar os fatos de acordo com outros interesses.
Este cenário caótico acaba se transformando em terreno ideal para o florescimento daninho do extremismo político-ideológico, principalmente nas mídias sociais.
Parte II – Momento Oportunista
Conhecido pelo seu formidável bestseller, “O Ócio Criativo”, o sociólogo e escritor Domenico de Masi nos brinda agora com seu intrigante “Alfabeto da Sociedade Desorientada: Para Entender o Nosso Tempo”. Com sua peculiar habilidade, o autor italiano apresenta um fiel retrato do papel que exercem as atuais mídias sociais.
Uma de suas principais constatações é que a “intoxicação midiática possui uma capacidade ímpar de condicionar as massas, tanto em questões essenciais quanto triviais”. Segundo o autor, elas são capazes de distorcer valores, provocar desejos, criar necessidades artificiais e amplificar medos. Seu principal objetivo é influenciar o comportamento e as escolhas das pessoas nos diversos domínios da sociedade.
Cientes deste fato, grupos extremistas aproveitam-se da desorientação social para propagar, irrestritamente, suas inflamadas e despóticas ideias. Mas a retórica extremista, hoje em ascensão, não é apenas um comportamento inconveniente de pessoas inconsequentes em busca de atenção. Em termos políticos e sociais, esse tipo de retórica esconde muito mais riscos do que imaginamos.
No Brasil, o recente agravamento da polarização político-ideológica, a reboque da crescente influência das mídias sociais apresenta, hoje, um sério desafio à sociedade brasileira. De fato, na medida em que segrega o debate legítimo, retirando espaço da exposição de ideias e impondo sua versão simplificada dos problemas (e de suas soluções), o extremismo político agrava, ainda mais, o já pobre e combalido debate público em nosso país.
Esta indigesta crise, entretanto, aflige também o debate público vigente nos Estados Unidos. Por sua gravidade, a questão mereceu especial atenção da professora de Ciências Políticas da Universidade da Pensilvânia, Amy Gutmann, autora de um artigo intitulado The Lure & Dangers of Extremist Rhetoric – A Atração e os Perigos da Retórica Extremista, publicado no The Journal of the American Academy of Arts and Sciences.
Sua análise é tão importante quanto atual, e pode servir de parâmetro a todos aqueles que pretendem contribuir para o aperfeiçoamento da primaveril e ambivalente democracia brasileira. Vejamos o que ela diz:
“Numa democracia, a controvérsia é saudável. Questões complexas tão abrangentes quanto imigração, assistência médica, intervenções militares, tributação e educação raramente se prestam a soluções simples e consensuais. Quem se beneficia pela argumentação sólida é o próprio interesse público. Mas quando as divergências são acentuadamente motivadas e distorcidas pela retórica extremista… o debate se degenera, impedindo a formação de compromissos construtivos que beneficiariam ambos os lados.”
Em sua análise, a professora destaca dois traços deletérios impostos pela retórica extremista ao debate público em todas as suas instâncias:
“A retórica extremista verdadeira possui duas características marcantes. Primeiro, inclina-se à obstinação em qualquer que seja a questão. Segundo, expressa apaixonadamente a certeza da supremacia de sua perspectiva sobre o assunto, sem se submeter a um teste razoável da verdade ou a um debate público fundamentado.”
Para os que leram nosso artigo ‘Quanto Vale a Sua Opinião’, publicado recentemente, da descrição acima saltará aos olhos o inequívoco ‘efeito da superioridade ilusória’ em ação.
Repare, ainda, que os ataques perpetrados na internet demonstram um padrão que os denuncia. Se observarmos bem, notaremos que as duas classes de palavras mais utilizadas pela retórica extremista são os ‘adjetivos’ e as ‘interjeições’. Adjetivos para modificar o ‘significado’ e interjeições para evocar ‘sensações’. Não há lugar para a sensatez das razões.
Parte III – Emoção e Razão na Medida Certa
A atração que a retórica extremista exerce sobre as pessoas, a despeito de sua formação intelectual ou status social, carrega um componente psicológico que tem desafiado muitos psicólogos e analistas políticos nos dias atuais. Muitas delas, mesmo sem pertencer a nenhum grupo radical, são frequentemente atraídas e convencidas pela retórica falseada de inúmeros iluminados.
Segundo a professora Amy Gutmann, isso ocorre porque na retórica extremista os problemas sociais complexos são tratados de maneira banal e reducionista. Assim, com a simplificação conceitual do objeto e a ardilosa adição de um forte componente emocional, a mensagem está pronta para convencer os dispersos e displicentes.
Acolhida a mensagem, o receptor passa a experimentar uma sensação de segurança que, apesar de transitória, disfarça com eficiência a profundidade das incertezas que tais realidades, por sua própria natureza, ensejam.
Mas como enfrentar o reducionismo entusiasta que sustenta a retórica extremista sem nos valermos de seus nocivos e viciados métodos de convencimento?
Retórica Legítima
Em 1964, na Convenção Nacional Republicana dos Estados Unidos, o Senador Barry Goldwater, em célebre discurso citado pela professora Amy Gutmann, proferiu palavras que merecem menção:
“Gostaria de lembrá-los que o extremismo na defesa da liberdade não é vício. E permitam-me lembrá-los, também, que moderação na busca pela justiça não é virtude.”
Mas a que extremismo se refere o Senador Goldwater? Decerto não se refere ao sensacionalismo infundado que, por conveniência, ignora seletivamente os fatos. Também não contempla o rude reducionismo temático embalado em rituais dramáticos.
O extremismo mencionado por Goldwater se refere, na verdade, à intensidade na defesa da liberdade e da justiça. Consiste na proteção rigorosa dos pilares essenciais de uma sociedade livre e democrática. Significa agir com coragem e paixão, sem, contudo, se valer das mesmas armas usadas pelos extremistas inescrupulosos que atropelam direitos, pessoas e instituições ao galgarem seus postos de poder.
A legítima retórica pode ser extrema. Não no sentido pejorativo que a palavra ‘extremista’ carrega em nossos dias. Mas no sentido de que não precisa prescindir por completo do componente emocional. Sua postura deve ser racionalmente e emocionalmente enfática, sem perder sua integridade moral. Sua argumentação deve ser ardente e sólida quanto ao que defende, ao mesmo tempo em que zela pela honestidade intelectual e respeito pelo que discorda.
O que é vedado à retórica legítima (por razões morais e sociais) é o uso indiscriminado das emoções em detrimento dos melhores argumentos e razões, apenas para atingir objetivos egoístas. Na sã e boa retórica, a máxima maquiavélica segundo a qual “os fins justificam os meios” não encontra amparo algum.
Além do mais, ao negligenciar a exposição racional, qualquer retórica pode colocar em risco os próprios ideais que pretende defender. Quando isso acontece, liberdade e justiça são vilipendiadas e aviltadas sob o contraditório argumento de que estão sendo defendidas.
Observe o que diz a professora Gutmann a esse respeito:
“Para que nós, pluralistas moralmente engajados, sejamos eficientes, devemos ser, ao mesmo tempo, apaixonados e racionais em nossa retórica. A paixão apoiada pela razão eleva o debate democrático, além de torná-lo mais atraente e eficaz.”
Em face do avanço contínuo da retórica extremista que hoje acompanhamos, especialmente na esfera política, cabe a nós, ‘pluralistas moralmente engajados’, a tarefa de expor este enganoso e aborrecido tipo de debate e substituí-lo por outro mais aprazível, interessante, autêntico e útil à sociedade.
Para isso, além de muita paciência, é crucial a adoção de uma retórica argumentativa firme, sincera e elegante, na qual emoção e razão encontrem a devida expressão.
Emoções são importantes, mas com o passar do tempo perdem a sua força vital. As boas razões, ao contrário, podem manter por séculos a sua exuberância. Por isso, são elas as ferramentas mais eficazes para a defesa da liberdade, da democracia e da justiça, e as mais apropriadas para a manutenção de nossa preciosa e indispensável sanidade.
Referências Bibliográficas:
F. Scott Fitzgerald: The test of a first-rate intelligence is the ability to hold two opposed ideas in the mind at the same time, and still retain the ability to function. Disponível em: The Crack-Up
Amy Gutmann: The Lure & Dangers of Extremist Rhetoric – “A Atração e os Perigos da Retórica Extremista” (Fall 2007 – Daedalus. The Journal of the American Academy of Arts and Sciences). Disponível em: https://president.upenn.edu/meet-president/extremist-rhetoric
Domenico de Masi: “Alfabeto da Sociedade Desorientada: Para Entender o Nosso Tempo”, 2017, p. 328.
Maquiavel, Nicolau: “O Príncipe”, Ed. Ridendo Castigat Mores, 2005, p. 105. A conhecida máxima “os fins justificam os meios” não é literal. Acredita-se, na verdade, que tenha sido baseada no seguinte trecho de sua obra “O Príncipe”: “Nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo.”
Ju, reflexão muito interessante. Da mesma forma que analisamos o racionalismo elegante e que por vezes foge ao atrito do debate, versus aquele apelo ao emocional que, no extremo oposto, vocifera sua certeza de única solução e garantia de justiça, percebemos outra dualidade de sentimentos que talvez acrescente algo a essa tendência ao apelo emotivo. Quando me refiro a sentimentos, sigo a ideia de que, o ser humano, ainda que busque tomar decisões racionais, parece acabar por fazê-lo por razões sentimentais, isto é, o pano de fundo pode até parecer lógico e racional, mas as decisões são geralmente tomadas irracionalmente, ou seja, sob uma óptica emotiva. Apesar de amplamente discutido no âmbito da Administração e suas teorias gerais, Peter Drucker, considerado o pai da Administração moderna, em sua primeira obra The End of Economic Man: The Origins of Totalitarianism, analisa o fenômeno social do totalitarismo. Nesse sentido e em publicações posteriores, ele analisa o homem em busca da racionalidade em suas decisões, mas que acaba tomando decisões de cunho emocional. Como a vida em sociedade envolve administrar, tomar decisões, creio se aplicar aqui ao tema também. Pois bem, os sentimentos que me vem à mente são: decepção e sofrimento (este ao estilo “skin in the game”). Em outras palavras, acredito fortemente que, apesar da necessidade de melhores debates, da retórica e do contraditório, dificilmente os absurdos extremistas que temos revivido não encontrarão solo farto. A sensação de injustiça, o descrédito e desesperança causados pelos próprios agentes políticos, tem produzido esse fenômeno, ou no mínimo facilitado em muito o caminho do extremismo e das fale news. A decepção das pessoas de forma geral com os rumos tomados pelos políticos, e a dor causada naqueles que estão sentindo na pele tais injustiças, contribuem bastante com a tendência extremista, isto é, sentimental, e à adoção rasa de pensamentos totalitaristas (que nunca resolveram problemas e injustiças sociais, aliás, pioraram). Forte abraço.
Cris, mais uma vez obrigado pelo comentário! Sem dúvida, como você disse, a retórica extremista, o totalitarismo, o fanatismo, sempre encontrarão terreno fértil. Não sei se você notou ao final do texto a citação de Maquiavel em que ele diz “no mundo não existe senão o vulgo”. Na verdade, minha primeira intenção em incentivar essa “retórica-resposta” a todo discurso dessa natureza, é nos defender – a nós, nossos parentes, nossos amigos etc. – do impacto negativo que podem causar. A ideia não é propriamente convencer o “mau”, mas orientar os sinceros. Mais ou menos como a função da Polícia, nas palavras de um amigo delegado da Polícia Federal, o objetivo agora não é mudar o mundo, mas evitar o “caos social”. Nesse caso, a função imediata seria evitar o “caos familiar” e conservar as antigas amizades. Se conseguirmos atingir esse objetivo, ainda que em parte, o trabalho não será em vão. Conto com você! Rsrsrs! Valeu demais, mais uma vez! Forte Abraço!
Num ambiente de debate dessa natureza, é sempre um prazer meu caro amigo. Quanto ao trecho “no mundo não existe senão o vulgo”, havia visto, é uma visão interessante, amarga mas decepcionantemente realista. Quanto ao objetivo da retórica-resposta, da nossa auto-proteção, extremamente bem-vindo. Não sei se já leu “SPA – Síndrome do Pensamento Acelerado” do Augusto Cury. Há um trecho em que ele trata da necessidade de “proteger nossas emoções”. Leitura marcante (li esse pequeno e didático livro 3 x, vale muito o investimento). Um abraço.