Armadilhas do Pensamento
Durante uma viagem com a família pelo estado americano do Wisconsin, o escritor e apologista, Greg Koukl, conversava com a atendente de uma loja de fotografias, quando um detalhe chamou sua atenção.
A simpática jovem usava um colar com o símbolo de um pentagrama. Curioso, Greg perguntou a ela se o pingente tinha algum significado religioso ou se era apenas um enfeite.
A resposta àquela despretensiosa pergunta tornaria a conversa bem mais interessante e traria à tona um exemplo corriqueiro de “dissonância cognitiva”, fenômeno ao qual muitos se referem, principalmente nas redes sociais, sem as merecidas considerações.
O Pentagrama
Embora não existam registros precisos quanto à sua origem, sabe-se, hoje, que o pentagrama era usado como símbolo pelos gregos e babilônicos desde a antiguidade. Durante a Idade Média, foi adotado pelos cristãos como representação das cinco chagas de Cristo e no Renascimento, como símbolo associado à magia e ao ocultismo.
No Século XIX, a estrela de cinco pontas passou a ser utilizada de cabeça para baixo, como instrumento de oposição ao cristianismo. Seu intuito era propagar o triunfo da matéria sobre o espírito. Atualmente, o símbolo é utilizado pelos adeptos da bruxaria e do paganismo moderno (Wicca).
Nesta Igreja Anglicana em Auckland, Nova Zelândia, construída em 1884, vemos uma janela adornada com um pentagrama. Fato que muitos desconhecem, o símbolo já foi usado por cristãos em tempos antigos para representar as cinco chagas de Cristo.
A Conversa
O diálogo a seguir, narrado pelo escritor e apologista, Greg Koukl, pode ser encontrado em seu livro, “Táticas: Um Plano Estratégico Para Discutir Suas Convicções Cristãs”. Título original: “Tactics: A Game Plan for Discussing Your Christian Convictions”. Tradução: Parlatorium Online.
A Pergunta
Há muitos anos, durante as férias em nosso retiro familiar no norte de Wisconsin, eu e minha esposa entramos em uma loja para digitalizar algumas fotos. Eu notei que a mulher que nos atendia usava um enorme pentagrama – estrela de cinco pontas normalmente associada ao oculto – pendurado em seu pescoço.
– “Esta estrela tem algum significado religioso?” Eu perguntei, apontando para o pingente, “ou é apenas um enfeite?”
– “Sim, tem um significado religioso”, ela respondeu. “As cinco pontas representam a terra, o vento, o fogo, a água e o espírito”. Ao que acrescentou, “Eu sou pagã”.
Minha esposa, pega de surpresa pela sinceridade da moça, não conseguiu evitar um leve sorriso, e imediatamente se desculpou.
– “Desculpe-me! Eu não quis ser deselegante. Mas eu nunca tinha ouvido alguém admitir ser pagão tão naturalmente”, ela explicou. Ela conhecia o termo apenas no sentido negativo, usado por seus amigos para reprender seus filhos: “Já para dentro, seu bando de pagãos!”
– “Então você é Wiccan?”, continuei.
Ela assentiu. Sim, ela era uma feiticeira.
– “É uma religião da terra,” explicou a mulher, “como os nativos americanos, nós respeitamos todo o tipo de vida”.
Wicca é uma tradição de Bruxaria Pagã. Hoje, o nome Wicca é frequentemente aplicado a todo o sistema de crenças e práticas que compõe o espectro da bruxaria pagã contemporânea (www.bbc.co.uk/religion).” Trecho inserido por Parlatorium Online
Dilema à Vista
– “Se você respeita todo o tipo de vida”, eu arrisquei, “suponho que você seja a favor da vida na questão do aborto.”
Ela balançou a cabeça negativamente.
– “Na verdade, não! Eu sou a favor da escolha.”
Eu fiquei surpreso.
– “Essa posição não é um pouco estranha para alguém que professa a religião Wiccan? Quero dizer, já que vocês respeitam todo o tipo de vida?”
– “É verdade, é um pouco estranha”, ela admitiu. Em seguida, ela se justificou. “Na verdade eu nunca seria capaz de fazer isso,” disse ela se referindo ao aborto. “Eu nunca poderia matar um bebê! Eu nunca faria nada para machucar alguém, pois isso poderia se voltar contra mim.”
Naquele momento, a conversa dera uma súbita reviravolta, por duas razões.
Primeiro, perceba as palavras que ela usou para descrever o aborto. Ela tinha acabado de admitir que o aborto era o assassinato de um bebê. A frase não era um floreio retórico da minha parte; era a sua própria descrição. Não seria mais necessário persuadi-la de que o aborto tira a vida de um ser humano inocente. Ela sabia disso.
O que ela não percebia é que sua admissão sincera me colocava em vantagem na discussão, e eu não desperdiçaria a oportunidade. A partir daquele ponto da conversa, eu abandonaria a palavra aborto. Em vez disso, seria “assassinato de bebê”.
Em segundo lugar, achei surpreendente que a primeira razão mencionada para não machucar uma criança indefesa era o interesse próprio – algo ruim poderia recair sobre ela. Era esse o seu melhor argumento? Pensei. O comentário merecia ser explorado, mas eu preferi seguir por outro caminho.
– “Bem, talvez você não fizesse nada para machucar um bebê, mas muita gente faria,” ponderei calmamente. “Nós não deveríamos fazer alguma coisa para impedi-las de matar bebês?”
Direito à Escolha
– “Eu acho que as mulheres deveriam poder escolher”, ela respondeu rapidamente, sem refletir.
Ora, declarações genéricas como essa “Mulheres deveriam poder escolher” não fazem sentido se consideradas isoladamente. Como na declaração, “Eu tenho o direito de escolher…” a alegação requer um objeto. O que escolher? O que fazer? Ninguém tem um direito de escolha irrestrito. Pessoas só têm o direito de escolher coisas específicas. O direito de alguém escolher depende da escolha que se tem em mente.
Neste caso, contudo, não havia ambiguidade. A jovem já havia identificado que tal escolha se resumia ao seguinte: matar bebês, para usar as palavras dela. Ainda que ela pessoalmente respeitasse todo tipo de vida, incluindo a vida humana, essa não era uma crença que poderia ser defendida sem constrangimento. A despeito disso, as mulheres deveriam poder escolher matar seus próprios bebês.
Essa era sua visão. Embora ela não tenha expressado sua convicção nestes termos, era claramente nisso que ela acreditava.
– “Você quer dizer que as mulheres deveriam ser livres para escolher se matam ou não seus bebês?”
– “Bem…” Ela pensou por um momento. “Acho que todos os lados devem ser considerados neste caso.”
– “Tudo bem, me diga que tipo de considerações tornariam justificável matar um bebê?”
– “Incesto”, ela respondeu.
Eu não me surpreendi com a resposta pois sabia que o argumento fazia parte do “manual do aborto”, mas não quero que você deixe passar algo muito importante aqui.
Esta estimada jovem estava apresentando seu ponto de vista por meio de clichês padronizados em favor do aborto: “mulheres têm o direito de escolha”, “todas as coisas devem ser levadas em consideração”, “incesto justifica o aborto”. Ocorre que, nesse caso, seus clichês não defendiam racionalmente o aborto, ao contrário, promoviam explicitamente o morticínio de bebês.
No entanto, ela não se dava conta de tal fato porque os clichês bloqueavam sua visão. Ela apenas recitava frases sem refletir. De qualquer maneira, pode-se perceber que do meu ponto de vista a conversa começava a soar um tanto quanto estranha.
Isso acontece o tempo todo, claro, nos dois lados do debate. Nós apresentamos nossos clichês de estimação – sejam eles seculares ou cristãos – na esperança de que nossas frases de efeito façam o trabalho que apenas uma conversa cuidadosa e profunda poderia fazer. O hábito frequentemente ofusca o significado verdadeiro (ou suas ramificações, neste caso) de nossas palavras.
Isso acontece o tempo todo, claro, nos dois lados do debate. Nós apresentamos nossos clichês de estimação – sejam eles seculares ou cristãos – na esperança de que nossas frases de efeito façam o trabalho que apenas uma conversa cuidadosa e profunda poderia realizar.”
Feitiço Ameaçado
Eu, então, decidi levar a conversa um pouco adiante, na esperança de quebrar o feitiço daquele clichê.
– “Deixe-me ver se eu entendi sua posição”, eu disse. “Digamos que eu tivesse uma criança de dois anos ao meu lado que tenha sido concebida através de incesto. Na sua visão, me parece, eu deveria ter a liberdade de matá-la. Estou certo?”
Esta última pergunta deixou-a sem ação. Embora a ideia fosse manifestamente absurda, também era claro que ela estava profundamente comprometida com suas convicções em favor do aborto. Assim, sem um clichê inoportuno para me responder, ela teve que parar por um momento para pensar na enrascada que ela mesma havia se colocado. Finalmente, ela disse, “Meus sentimentos sobre esse assunto são confusos.” Este era o seu melhor argumento.
É claro, ela quis dizer que era uma exceção, mas era uma resposta desesperadamente fraca. (“Matar uma criança de dois anos? Nossa, agora você me pegou. Eu terei que pensar a respeito.”)
– “Espero que sim”, era tudo o que eu tive coragem de dizer.
A esta altura notei que uma fila de clientes se formava atrás de mim. Percebi, então, que nossa conversa estava interferindo em seu trabalho, e que minha breve oportunidade havia chegado ao fim. Eu e minha esposa finalizamos a compra, nos despedimos, e partimos.
Cognição Dissonante
A dissonância cognitiva é um estado de aversão provocado pelo conflito interno entre crenças ou comportamentos que provoca em nós uma reação mental autônoma e defensiva que tem a finalidade precípua de modificar ou eliminar algum destes elementos entre si inconsistentes.
Esta modificação ou eliminação de uma ou mais referências contraditórias visa atenuar o conflito identificado no pensamento e manter sua coerência habitual. É desta reação inconsciente que decorrem as falhas macroscópicas de raciocínio que nos chamam tanto à atenção.
É por isso que, muitas vezes, quando nos deparamos com algum fato ou informação que não se coaduna com o que acreditamos ou pensamos sobre determinado assunto, sentimos uma difusa sensação de desconforto psíquico.
Na tentativa de se livrar do mal-estar provocado pela manutenção simultânea de duas crenças ou suposições antagônicas, nosso cérebro recorre a manobras psicológicas irrefletidas para atenuar a momentânea sensação de angústia mental.
Mas embora este processo nos pareça consciente, na verdade se trata de um processo essencialmente inconsciente e de difícil detecção. É por isso que as pessoas costumam imputar este raciocínio defeituoso sempre aos outros; nunca a si mesmos. A maioria não percebe que todos nós, em maior ou menor grau, mais cedo ou mais tarde, podemos ser vítimas desta armadilha cognitiva.
Assim, no afã de eliminar este incômodo estado de aversão, muitas vezes nós menosprezamos ou descartamos o conhecimento conflitante, limitamos nossa exposição a informações que não se alinhem a nossas crenças preestabelecidas, ou até mesmo nos convencemos de que, na verdade, o conflito é inexistente.
Pensamento Crítico
Em seu livro, “Formando Pensadores Críticos”, Julie Bogart nos convida a pensar um pouco sobre as sérias implicações que um pensamento excessivamente defensivo pode gerar. No capítulo intitulado, “O surpreendente Papel da Autoconsciência no Pensamento Crítico”, ela descreve uma interessante experiência ocorrida durante sua graduação universitária:
Acontece assim. Você está em uma conversa acreditando estar aberto a aprender mais sobre um assunto. Então, seu interlocutor lança em sua direção uma ideia que contradiz uma de suas convicções. O que acontece?
Seu coração acelera? Você fica vermelho de raiva? Você sente a adrenalina disparar? Que história sua mente inventa sobre as evidências que a outra pessoa apresenta? Você duvida de suas fontes automaticamente?
Quando eu era estudante de graduação na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), escrevi um artigo que me colocou num dilema. Eu esperava encontrar confirmação para minha tese, e encontrei… até que tropecei em uma fonte importante contrária ao meu argumento.
Meu rosto queimava. Eu me sentia exposta. Eu não queria que esses novos fatos interferissem em minhas convicções. Você acha que eu alterei minha tese ou reescrevi meu artigo para enfrentar esse desafio? Não. Eu simplesmente fingi que a evidência contrária não existia.
Pesquisas chamam esse tipo de viés de ‘efeito avestruz’. Escolhi enfiar a cabeça na areia, ignorando os dados que não me interessavam.
Como nos adverte Julie Bogart, esta inarredável necessidade de se ver livre da tensão mental cognitiva acaba criando verdadeiros pontos cegos de raciocínio, não importa qual seja o nosso histórico escolar, formação acadêmica ou quociente de inteligência (QI).
A dissonância cognitiva pode se tornar o tendão de Aquiles intelectual de qualquer pessoa, pois uma vez acionados os mecanismos inconscientes de compensação cognitiva, a falha de raciocínio se torna praticamente imperceptível e acabamos acreditando cegamente que nossas crenças e convicções são fruto de um processo puramente racional.
Mas ainda que esta não seja uma tarefa simples, é possível detectar nossos pontos cegos intelectuais. E um dos principais instrumentos à nossa disposição para o desenvolvimento de um pensamento crítico é a “reflexão inteligente”. Pensar criticamente é refletir com inteligência. É considerar e sopesar honestamente outros fatos e opiniões. É investigar as tonalidades e os detalhes de cada representação da realidade, de cada pensamento, de cada sentimento. Pensar criticamente é repensar continuamente.
O ato de refletir autêntico é sobretudo intencional. Ao contrário de boa parte de nossas respostas mentais que operam de maneira automática, a reflexão atua em outra rotação. Como indicam as pesquisas mais recentes no campo da psicologia cognitiva, como as realizadas por Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, a reflexão adequada demanda tempo. Deve ser ponderada, meditativa, e por isso exige de nós especial atenção e esforço mental.
Uma boa reflexão só é possível através do monitoramento dos próprios pensamentos (metacognição). Ao inspecionarmos cuidadosamente o nosso próprio pensamento, ampliamos nossas chances de identificar falhas cognitivas antes imperceptíveis.
De fato, essa inspeção pormenorizada não é trivial, pois exige de nós uma atitude humilde, paciente e resoluta para superar eventuais desconfortos psíquicos e reavaliar nossos vieses cognitivos e pressupostos conceituais. Mas é, sem dúvida, uma das principais habilidades a serem adquiridas pelos que pretendem expandir seu pensamento crítico.
Conclusão
Diante do desconforto ou sofrimento psíquico causado por um conflito cognitivo, é bem mais cômodo nos apoiarmos em opiniões pré-fabricadas por terceiros para evitar o esforço de pensar criticamente sobre determinada questão.
Como no caso da jovem Wiccan de Wisconsin, quando nos sentimos intelectualmente ameaçados, recorremos apressadamente aos nossos clichês de estimação padronizados esperando silenciar a estressante desafinação mental percebida e restaurar a consonância cognitiva habitual.
Para desenvolver um autêntico pensamento crítico, a capacidade de superar este incômodo psíquico é primordial. Por isso, ceder irrefletidamente ao impulso de aliviar a aflição intelectiva é a maneira mais efetiva de sabotar o autêntico avanço cognitivo.
Sem a devida coragem moral e humildade intelectual para aprender com inteligência e consistência, permaneceremos reféns de nossas próprias crenças e preconcepções e, como resultado, perpetuaremos nosso confortável (porém arriscado) estado de estagnação intelectual.
Não seria melhor e mais prudente, para nós e para a sociedade, nos arriscarmos nesta instigante atividade de pensar e repensar, sempre que oportuno?
O orgulho leva a pessoa à destruição, e a vaidade faz cair na desgraça.” Provérbios 18:16. Versão NTLH
“Não rir, não lastimar, nem detestar, porém compreender.” Baruch Espinoza
Elaboração: Juliano Nunes