Como a subjetividade e a autoproteção afetam a comunicação de um casal
1. Introdução
Como destacamos no artigo anterior, os filtros mentais e emocionais estão entre as principais causas dos problemas de comunicação nos relacionamentos. Foi essa a conclusão categórica de um amplo estudo desenvolvido pela Universidade de Denver.
Dentre os muitos filtros possíveis, os pesquisadores identificaram os cinco mais comuns:
- as distrações
- os estados emocionais
- as crenças e expectativas
- as diferenças individuais (estilo)
- a autoproteção
Vimos, também, como os três primeiros filtros (distrações, emoções e expectativas) podem comprometer o diálogo no relacionamento se não receberem a devida atenção, ainda que nos sobrem boas intenções.
Concluímos nossa reflexão demonstrando que, para neutralizar os efeitos nocivos destes filtros, é primordial desenvolvermos nossa percepção e sensibilidade. Para isso, precisamos, urgentemente, aprimorar nossa capacidade de ouvir genuinamente.
No artigo de hoje, trataremos das diferenças individuais (estilo) e da autoproteção.
2. Percepções Imprecisas
Quando eu e meus irmãos ainda morávamos com nossos pais, a cozinha do apartamento era o palco central de acaloradas conversas que tinham seu auge invariavelmente durante as madrugadas.
Porém, o hereditário hábito de falar alto, aliado às pequenas janelas basculantes permanentemente abertas por causa do calor, tornavam o evento barulhento, fosse pelas argumentações aguerridas ou pelas histórias divertidas que cada um contava.
Era muito comum que durante tais conversas minha mãe caminhasse até a porta da cozinha para nos advertir: “Falem mais baixo, por favor, ou os vizinhos pensarão que vocês estão brigando”.
Não raramente, o temor maternal se materializava e algum vizinho requisitava a intervenção do porteiro para que fosse restaurado o silêncio. Talvez imaginassem se tratar de alguma discussão. Mas, na verdade, tratavam-se apenas de rapazes (e senhores) distraídos e entusiasmados.
Enigmática Subjetividade
Uma mesma palavra (ou atitude) pode ser entendida de maneiras diversas dependendo dos traços subjetivos daquele que escuta. Nossa “subjetividade”, portanto, tem papel de grande relevância em nossa percepção das palavras e das atitudes.
Em termos filosóficos, podemos entender a subjetividade como “estado psíquico e cognitivo do sujeito cuja manifestação pode ocorrer tanto no âmbito individual quanto no coletivo, fazendo com que esse sujeito tome conhecimento dos objetos externos a partir de referenciais próprios”.
Esses referenciais personalizados são resultado do entrelaçamento de diversos fatores externos e internos. Externamente, nossas experiências familiares, cultura, relacionamentos afetivos, amizades, educação formal ou informal que recebemos, traumas e conquistas, podem moldar, à nossa feição, boa parte das mensagens que transmitimos e recebemos.
Além dos fatores externos, as características de nossa personalidade também afetam diretamente nossas interações sociais. Tanto é assim que, atualmente, vários são os instrumentos que se propõe a desvendar nossa enigmática individualidade.
MBTI
O MBTI, Myers-Briggs Type Indicator, é apenas um dos sistemas conceituais (ainda que não unânime) desenvolvidos com o intuito de delinear e caracterizar os possíveis tipos de personalidade.
Quando morava no Colorado, eu mesmo me submeti ao MBTI aplicado pela empresa Slifer Designs, na qual trabalhei. Após analisar as conclusões reveladas pelo teste, me foi possível identificar e compreender, com mais clareza, importantes traços da minha personalidade.
O intuito da maioria destes testes é incentivar tanto o autoconhecimento quanto o conhecimento do outro de modo a aprimorar, nos ambientes profissionais, nossas relações interpessoais.
Nada impede, porém, que esse tipo de conhecimento, quer se origine de alguma escala elaborada, ou de nossa própria percepção acumulada, possa nos assistir em nossos relacionamentos amorosos.
Distintos “Portugueses”
É necessário ter em mente que, muitas vezes, o que é comum para determinadas pessoas pode ser considerado por outras reprovável. O que é aceito por certas famílias e culturas, como o tom de voz moderadamente alterado, pode ser visto por outras como autêntico e inaceitável desrespeito.
Não é incomum, mesmo após anos de convivência, que as pessoas ainda não tenham identificado com a devida clareza até que ponto o dicionário psíquico individual de seu parceiro interfere em sua maneira de perceber a realidade e de se comunicar com o mundo.
A ambiguidade derivada desse descompasso semântico que tantas vezes provoca mal-entendidos no relacionamento é tal, que em muitas ocasiões nos sentimos como se falássemos línguas diferentes, mesmo nos valendo de idênticos registros linguísticos.
A título de ilustração, imagine uma conversa casual entre um brasileiro e um português, considerando que ambos desconhecem as peculiaridades semânticas que uma mesma palavra pode apresentar, dependendo do país em que é pronunciada.
O brasileiro Marcelo e o português Manuel conversam sossegados no Terreiro do Paço em Lisboa sob um aprazível entardecer. De repente, uma bela jovem de aparência sueca desperta o interesse do bom moço lusitano. Imediatamente, ele se volta para o colega tupiniquim e pergunta: – O que pensas daquela rapariga?
A expressão de espanto do brasileiro, porém, denuncia que algo está errado. Após algumas palavras tudo se esclarece. O mal-entendido havia ocorrido pelo simples fato de que em Portugal a palavra “rapariga” é usada para adjetivar uma moça formosa, enquanto no Brasil, especialmente no Nordeste, a mesma palavra carrega conotação indiscutivelmente desonrosa.
3. Autoproteção – O Escudo Automático
Em momentos de conflito no relacionamento, invariavelmente nos ‘defendemos’ sozinhos.
Neste tipo de conflito, a princípio, não há juiz nem júri. Cada parte envolvida atua, ao mesmo tempo, como advogado de defesa (própria) e de acusação (alheia). Dentre os possíveis vereditos, o mais indicado é o acordo.
Sozinhos nesse julgamento, então, desembainhamos prontamente nossa melhor contestação: o escudo da autoproteção.
Dentre os instintos, um dos mais poderosos, esse escudo é ativado sempre que detectamos alguma ameaça à nossa “sagrada”, sensível e ambivalente auto-estima.
Em importante artigo escrito pelos pesquisadores Alicke e Sedikides sobre o tema – “Auto-aprimoramento e autoproteção: O que são e o que provocam” – encontramos uma análise que pode nos ajudar a entender um pouco melhor esse insidioso filtro de comunicação:
“O que ativa a autoproteção é a motivação para se defender contra auto-percepções negativas… Acredita-se que o impulso da autoproteção vem do desejo abrangente de proteger e manter a auto-estima, e é ativado quando um evento ameaça a auto-percepção de alguém.” 1 (Tradução: Parlatorium Online).
Segundo esse entendimento, nosso medo da rejeição (invariavelmente tormentoso) é a mola mestra que impulsiona nosso instinto de autoproteção. Contudo, instintos normalmente são irracionais e podem nos levar a conclusões equivocadas e precipitadas que frequentemente comprometem o equilíbrio previamente estabelecido.
Efeitos Contrários
Com toda a razão, portanto, Holly Parker, psicóloga clínica e conferencista da Universidade de Harvard, sustenta que nosso instinto de autoproteção pode causar o efeito exatamente oposto ao que desejamos:
“… Imagine que nos desliguemos emocionalmente e nos afastemos, ou façamos comentários incisivos que atinjam nosso parceiro, para que nos sintamos menos vulneráveis diante da angústia e da incerteza. Assim, fecharemos ainda mais a porta para a intimidade. Isso seria o mesmo que tentar caminhar em direção a alguma coisa, afastando-se dela… (ênfase adicionada)
… A autoproteção pode se tornar espinhosa porque, paradoxalmente, acaba criando justamente o que a pessoa que está se protegendo não quer – menos intimidade e segurança.” 2 (Tradução: Parlatorium Online)
Um típico comportamento com raízes no medo da rejeição é a dissimulação. Ao nos sentirmos de alguma forma “ameaçados”, com frequência agimos de maneira insincera, ocultando nossas verdadeiras intenções e sentimentos.
Sem sinceridade algo essencial se perde pelo caminho. Para não sermos atingidos pelo insuportável sofrimento que a rejeição pode nos causar, ficamos a mercê do instinto de autoproteção. Nossa honestidade, então, vacila e a verdade sobre o que sentimos e pensamos fica em segundo plano.
Essa atitude defensiva, quando recorrente, compromete seriamente nossa comunicação e denuncia que nosso conhecimento sobre o outro permanece incompleto. Com o passar do tempo, esse vácuo de intimidade pode se transformar em um grande obstáculo para a cumplicidade integral em um relacionamento.
Mesmo em relacionamentos duradouros certas situações de vulnerabilidade emocional podem trazer à tona nossos medos. Tomados de assalto pelas alterações químicas que nosso corpo produz ante o perigo (real ou imaginário), nossas atitudes passam a ser intempestivas, irracionais e malcriadas, o que em nada contribui para o aprimoramento da relação.
Portanto, se queremos entender nossos parceiros de modo mais claro e significativo, é essencial descobrirmos suas particularidades semânticas, ou em outras palavras, seus filtros mentais e emocionais tantas vezes escondidos.
Quanto mais firme nosso conhecimento, mais aptos estaremos para a tarefa de proteger nossos relacionamentos das distorções de comunicação potencialmente destrutivas que possamos enfrentar.
4. Mudança de Atitude
Mudança Gradual
Um dos caminhos mais apontados pelos psicólogos para amenizar os efeitos corrosivos provocados pelo inevitável instinto de defesa que nos espreita é o cultivo de uma auto-imagem equilibrada e saudável.
Em termos bem simplificados, isso significa que devemos desenvolver progressivamente nosso valor pessoal intrínseco. Desse modo, fortalecida nossa autoconfiança, nos tornaremos menos vulneráveis aos nossos impulsos autoprotetores.
Note, porém, que o cultivo da autoconfiança, embora indispensável, demanda tempo. Trata-se de um processo longo e complexo de autoanálise e mudança comportamental que exige amplo lapso temporal e intensa dedicação pessoal.
Mudanças Imediatas
Em termos imediatos, podemos lidar com a questão ampliando o raio de atenção dedicado a determinada situação, de modo a nos tornarmos mais conscientes daquilo que se passa conosco e ao nosso redor. Essa atitude pode trazer, quase imediatamente, importantes benefícios ao relacionamento.
Desde que você tome as rédeas de sua consciência tão logo identifique o conflito, será possível desmascará-lo e, assim, promover um ambiente emocional mais receptivo e acolhedor.
Isso só será possível por meio de atitudes e palavras que transmitam segurança e estimulem a confiança mútua, convidando o outro a se aproximar sem temer críticas inapropriadas, dolorosas ou destrutivas.
Outra postura vital, destacada pela psicóloga clínica Holly Parker, é o abandono da ideia de que agir de modo defensivo ou agressivo nos trará a intimidade e proximidade que almejamos. Pelo contrário, tal atitude pode trazer consequências diametralmente opostas às pretendidas.
Assim, quanto mais seguros nos sentirmos em relação ao outro, mais livres nos sentiremos para revelar os detalhes íntimos de nossos pensamentos e emoções. Por isso, construir um ambiente emocionalmente seguro é o melhor caminho para uma intimidade real, rica e reveladora.
5. Ultimato: Bebop Jazz nos Relacionamentos
Resta evidente, portanto, que tanto nossa personalidade (individualidade comunicativa) quanto nosso instinto de autoproteção são filtros mentais que exercem forte influência na maneira com a qual nos comunicamos, especialmente no âmbito dos relacionamentos afetivos.
Ignorá-los pode ser desastroso tendo em vista que sua incompreensão pode comprometer nossa comunicação e, como consequência, corromper nossos relacionamentos, multiplicando desnecessariamente os obstáculos à nossa frente.
Assim, além de procurar identificar nossos próprios filtros mentais, devemos também procurar identificar e compreender os filtros mentais que nossos parceiros carregam, ainda que sem notar.
Para que essa identificação seja efetiva, devemos explorar com autêntico interesse os traços singulares e marcantes presentes na maneira com a qual nossos parceiros se comunicam e se expressam.
Parafraseando o renomado psicólogo clínico Peter Fraenkel:
“Tudo fica muito mais fácil se cada parceiro adotar em relação ao outro uma postura essencialmente exploradora – no sentido adotado no bebop jazz.” (Tradução: Parlatorium Online)
Paralelo Perfeito
Vertente do jazz em voga nos anos 40, o bebop se caracterizava por harmonias e ritmos complexos e ênfase no improviso. Por isso, os instrumentistas deviam se mostrar sempre bem preparados. Deviam conhecer as escalas musicais do início ao fim para não se perderem durante as mudanças bruscas dos acordes.
O paralelo é perfeito. Para conquistarmos um relacionamento dessa qualidade (bebop jazz) é necessário explorarmos o outro em sua inteireza, conhecendo as nuances de sua personalidade, seus humores, seus desejos e seus receios.
Como um músico explora e internaliza complexas escalas musicais, nós também podemos explorar ativamente todos os aspectos da pessoa que amamos.
Através dessa exploração poderemos conhecê-la de modo cada vez mais abrangente e detalhado. Poderemos até mesmo almejar explorá-la e conhecê-la como Miles Davis e Charlie Parker exploravam e conheciam o Bebop Jazz.
Então, desfrutaremos de um divertido e sofisticado jazz a dois.
Referências:
1. https://www.psychologytoday.com/us/blog/your-future-self/201803/the-danger-self-protection-in-relationships.
2. Alicke, M. D., & Sedikides, C. (2009). Self-enhancement and self-protection: What they are and what they do. European Review of Social Psychology, 20, 1–48.
3. Peterson, Jordan B. 12 Rules for Life (pp. 230; 237-238). Random House of Canada. Kindle Edition.