Os impactos nocivos dos filtros mentais nos relacionamentos e o que fazer para neutralizá-los
Para entender porque alguns casamentos encontram felicidade e longevidade, enquanto outros se mantêm infelizes ou se desfazem, muitas vezes drasticamente, um grupo de especialistas do Centro de Estudos Conjugais e Familiares da Universidade de Denver se dedicou a um dos mais abrangentes e detalhados estudos até hoje realizados sobre relacionamentos conjugais.
Os resultados das pesquisas foram reunidos no livro Fighting For Your Marriage (Lutando Pelo Seu Casamento). Dele advém grande parte dos argumentos que instruem esta série de artigos. Nas palavras dos autores:
“As técnicas e estratégias deste livro são baseadas em pesquisas sólidas e atualizadas no campo do casamento – não em especulações da “psicologia popular”. Qual é a diferença? Nosso trabalho é empiricamente instruído e empiricamente testado.” 1
“Estamos convencidos de que você pode aprender como construir e proteger um ótimo relacionamento se estiver motivado para isso. Apresentaremos uma série de habilidades muito eficazes para lidar com conflitos e desentendimentos…”
“…Você descobrirá que essas técnicas não são propriamente difíceis de entender, mas exigirão certo investimento de tempo e energia para serem apreendidas.” 2
Se você é casado, ou pretende se casar, o aprendizado dessas habilidades, embora exija de nós certa parcela de dedicação, pode ser o início de um novo caminho que conduzirá nossos relacionamentos a destinos mais instigantes, recompensadores e felizes.
1. A Ciranda Inconsciente
No artigo anterior, tomando como ponto de partida o livro Lutando Pelo Seu Casamento, nossas atenções se voltaram para um dos problemas que mais interferem na comunicação de um casal: os filtros mentais.
Vimos que as experiências, sentimentos e pensamentos provenientes de nossas interações culturais, familiares e afetivas, moldam gradualmente em nós um singular mosaico interpretativo da realidade.
Concluímos que nossos filtros de comunicação podem comprometer severamente o conteúdo do que dizemos, especialmente na vida a dois.
Destacamos que as raízes inconscientes desses filtros tornam desafiadora a tarefa de identificá-los antes da incidência de suas corrosivas consequências.
Ao final, contudo, enfatizamos que é possível compreender melhor nossos filtros mentais e adotar estratégias eficazes para neutralizá-los. O mosaico interpretativo da realidade que todos nós carregamos pode ser melhor decifrado. Nas palavras dos pesquisadores da Universidade de Denver:
Os filtros são a principal causa da comunicação deficiente nos relacionamentos. Ao compreender seus filtros – e neutralizá-los – você pode melhorar imediatamente sua comunicação.” 3
As imagens acima destacadas possuem a mesma matriz e foram diferenciadas apenas por filtros digitais. Poderíamos dizer que todas elas suscitam em nós as mesmas emoções?
Partindo desta ilustração, nosso próximo passo será entender um pouco melhor como opera em nossa mente essa ciranda inconsciente.
2. Os 5 Filtros Mais Comuns
Dos infindáveis filtros mentais possíveis, cinco deles são os que, com mais frequência, afetam os relacionamentos de acordo com o livro Lutando Pelo Seu Casamento. São eles:
- As Distrações
- Os Estados Emocionais
- As Crenças e Expectativas
- As Diferenças Individuais (Estilo)
- A Autoproteção
Sobre os três primeiros, falaremos aqui. Sobre os últimos dois, falaremos depois.
1. Infindáveis Distrações
1.1. Sobrecarregados
Um dos filtros mentais que, com mais frequência, afetam os relacionamentos são as distrações. Como estão em toda parte (dentro de nós ou ao derredor) não há como evitá-las completamente. Além disso, como nossa capacidade de sustentar a atenção é notoriamente deficiente, estamos constantemente diante do perigo iminente do desentendimento.
Muitos casais, alheios a este perigo, enfrentam inúmeros conflitos que poderiam ser evitados apenas pela adoção de uma comunicação mais clara e menos reativa.
A mudança do estado de atenção para o de desatenção sofre forte influência inconsciente. Esta transferência de foco quase instantânea é responsável não só por muitos desentendimentos mas, também, por muitos constrangimentos. Como naquelas situações em que as palavras de alguém passam incólumes pelos nossos sentidos, nos obrigando a perguntar, envergonhados: O que foi mesmo que você disse?
As distrações se sobrepõe umas às outras sem se anunciarem. Não importa de onde venham, se de dentro de nós ou da realidade veloz, é como se não houvesse trégua suficiente.
Não só o lazer exasperado, mas também os compromissos diários, fora de hora e de lugar, podem representar distrações impertinentes. Portanto, aprender a domar nossa atenção fugidia, percebendo suas oscilações e entendendo suas sutilezas, é o primeiro passo para uma comunicação mais ajustada e efetiva em todas as esferas da nossa vida.
O cuidado deve ser constante, pois em cada esquina, em cada via, há sempre um algoritmo querendo conquistar nossa atenção.
A verdade é que não há como renovar, no mesmo ritmo, nosso modesto e limitado estoque de atenção. Embora a maioria das pessoas não se dê conta, a atenção é um recurso esgotável, diretamente afetado pela carga de estresse e de estímulos diários a que nos sujeitamos.
Por isso, você tem que escolher. Decidir, com habilidade, onde investir seu foco! Caso contrário, sua esposa (ou seu marido), mesmo perto todos os dias, terá que se contentar com as sobras de sua atenção.
1.2. Semiconscientes
O fenômeno atenção-desatenção, por óbvio, não é inteiramente inconsciente. De vez em quando pensamos sobre ele. Entretanto, nossa compreensão incompleta compromete nossa habilidade de enfrentar os desdobramentos práticos que o problema nos impõe.
Esta comum e confortável semiconsciência em relação aos nossos próprios pensamentos, sentimentos e atitudes (pois só os entendemos parcialmente), não é suficiente para produzir, no relacionamento, uma comunicação mais sofisticada, articulada e capaz de lidar com os conflitos e discussões sem comprometer a felicidade do casal.
Não há alternativa. Se queremos ser mais felizes afetivamente, precisamos aprender a detectar, nas mais diversas situações (intuitiva ou conscientemente) em que frequência está nossa atenção, para melhor a ajustarmos à daqueles que amamos.
Nesse sentido, o exercício a seguir pode nos ser muito útil.
Toda vez que, no meio de uma conversa rotineira, apressada, você desconfiar de algum ruído na comunicação, algum sinal de que algo não foi devidamente entendido, tome as rédeas da sua consciência e pare imediatamente.
Pare o que está fazendo, ainda que por um momento. Depois, esclareça qualquer ponto da conversa que mereça atenção. Esse átimo de consciência poderá evitar que uma pequena distorção de sentido, causada por uma distração despercebida, seja o estopim de uma discussão desnecessária e intempestiva.
Para as hipóteses em que são necessárias conversas mais sérias, em regra mais prolongadas, os pesquisadores da Universidade de Denver sugerem que o casal se auto-avalie previamente para saber se reúne as condições físicas e mentais para iniciar, desenvolver e finalizar uma conversa civilizada.
Caso contrário, sugerem os autores, o melhor a fazer é deixar a conversa para um momento mais apropriado.
2. Frágeis Estados Emocionais
Outro fator determinante para a qualidade da nossa comunicação é o nosso estado emocional latente. A cor dos fatos tem seus matizes alterados pelo pigmento dos sentimentos.
Existem diversos estudos demonstrando, por exemplo, que quando nos sentimos leves, de bom humor, tendemos a ser mais pacientes com nosso interlocutor. Por isso, nesse estado, o outro tem mais chances de ser contemplado com o generoso benefício da dúvida.
Por outro lado, quando mal-humorados, o efeito é oposto. Aborrecidos, nossa percepção daquilo que ouvimos é quase sempre negativa, ainda que a intenção do emissor tenha sido originariamente neutra, ou até mesmo positiva.
No exemplo a seguir, Sérgio chega em casa após um dia de trabalho e se acomoda confortavelmente no sofá para checar seus e-mails. Nesse momento, sua esposa Suzana surge na sala exasperada. Mas Sérgio, sem perceber sua irritação, diz a ela:
“SÉRGIO: Essa conta de telefone está atrasada de novo. É melhor pagar logo.
SUZANA: (sentindo raiva diante da situação). Não fui eu quem esqueceu. Você não está vendo que eu estou com as mãos ocupadas? Faça algo de útil!
SÉRGIO: Desculpe. Eu deveria ter percebido que você estava ocupada. Seu dia foi difícil?
SUZANA: Foi. Tive um dia muito estressante. Eu não quero descarregar sobre você, mas estou de saco cheio. Se eu estiver mais sensível do que de costume, não tem nada a ver com você.
SÉRGIO: Talvez possamos conversar sobre isso depois do jantar.
SUZANA: Obrigada.” 4
Assim como eu, você deve ter enfrentado situações semelhantes. Em muitas delas, porém, o desdobramento não foi tão condescendente. Se Sérgio não se desse conta da irritação de Suzana, e também a respondesse asperamente, um conflito desnecessário estaria prestes a eclodir.
Para Suzana, aquelas palavras relativamente neutras soaram como uma acusação injusta. Atento, porém, Sérgio percebeu, em tempo, que havia um ruído na comunicação.
Naquela situação, supondo honesta sua intenção, a decisão de respondê-la de maneira gentil abriu as portas para que ele explicasse que não queria acusá-la, mas apenas abordar o problema da conta atrasada.
Suzana, então, ao se sentir acolhida, esclareceu que sua irritação não era com Sérgio, mas decorria do dia desgastante de trabalho que havia enfrentado.
Uma pequena correção, sintonizando mensagem e intenção, foi o suficiente para manter íntegra e pacífica a comunicação do casal.
3. Crenças e Expectativas
Os extensos estudos realizados pela Universidade de Denver também confirmaram o que outros campos da ciência como a psicologia e a medicina há tempos observam: as pessoas tendem a ver o que esperam ver nos outros e a perceber o que esperam perceber nas situações em que se encontram.
Esta constatação reforça a ideia de que muitos de nossos filtros psíquicos estão vinculados àquilo que pensamos e esperamos de uma pessoa ou de uma determinada situação. É muito comum que nossas crenças nos levem a buscar apenas evidências que de alguma forma as corroborem e a ignorar as demais, ainda que consistentes.
Diante disso, os pesquisadores de Denver nos advertem sem rodeios:
“Não se iluda acreditando que você está imune a este tipo de comportamento.” 5
O diálogo real escolhido para ilustrar esse filtro deixa claro como nossas crenças e expectativas afetam a interpretação do que ouvimos. Identificá-las, porém, não é tarefa trivial.
Alex e Helen estavam tendo problemas para decidir o que fariam juntos quando tivessem um tempo livre. Eles chegaram a um dos seminários promovidos pela Universidade para tentar entender e superar aquele insistente impasse.
Como na maioria das vezes não conseguiam chegar a um acordo, acabavam ficando em casa. Assim, os sentimentos de distanciamento e frustração ganhavam cada vez mais espaço na vida do casal. No diálogo a seguir, note com cuidado os pensamentos que precedem as palavras:
“ALEX: (querendo muito sair para jogar boliche, mas imaginando que Helen não estaria interessada em sair e fazer algo divertido juntos). Nós temos um tempinho livre esta noite. Talvez devêssemos sair e fazer alguma coisa.
HELEN: (pensando que não seria má ideia dar uma volta, mas ao perceber a hesitação na voz de Alex, deduz que ele na verdade não quer sair). Ah, eu não sei. O que você acha?
ALEX: Bom, nós poderíamos sair para jogar boliche, o problem é que se for noite de campeonato, pode ser que nem consigamos entrar. Talvez fosse melhor ficar em casa e assistir algum programa na TV.
HELEN: (pensando: eu sabia, é isso que ele quer fazer na verdade). Por mim tudo bem. Por que não checamos o que está passando? Quem sabe não encontramos algo interessante?
ALEX: (sentido-se desapontado ele pensa: Eu sabia. Ela não quer nem se dar ao trabalho de sair para fazermos alguma coisa divertida). Por mim tudo bem.” 6
Poucas sentenças são suficientes para percebermos que estamos diante de um legítimo (inconsciente e perigoso) processo de adivinhação de pensamentos (mind reading). A distorção é evidente. Alex parte do pressuposto de que Helen não é muito de sair, e isso dita os passos subsequentes da conversa.
O que ele não imaginava é que naquela noite Helen estava a fim de sair.
Do outro lado, Helen também supõe que Alex quer, na verdade, ficar em casa e assistir televisão. Para chegar a esta frágil conclusão, ela se baseia em um delicado argumento: sua suposta hesitação.
É verdade que nossos palpites quanto ao que o outro está sentindo ou pensando muitas vezes se confirmam. Infelizmente, porém, é muito comum nos equivocarmos completamente (acreditando ter acertado), nos sujeitando, desnecessariamente, a discussões e ressentimentos que teriam sido devidamente evitados com a franqueza e ternura de uma boa e genuína conversa.
Conclusão
Juntas, nossas distrações, emoções e expectativas, quando relegadas à própria sorte, podem criar uma barreira quase intransponível na comunicação de qualquer casal, mesmo dos mais apaixonados, comprometidos e bem-intencionados.
Contudo, ao desenvolvermos percepção e sensibilidade por meio do aperfeiçoamento da capacidade de ouvir com mais atenção, mais habilmente neutralizaremos os efeitos dos filtros mentais em nossa comunicação. Desse modo, estaremos aptos a reconstruir e proteger nossos relacionamentos afetivos.
Portanto, se nossa motivação tocar as raias da ação e estivermos dispostos a adquirir o conhecimento prático necessário, os conflitos e desentendimentos, inerentes a qualquer relacionamento, não terão os mesmos impactos nocivos de outros tempos, pois, agora, serão vistos com olhos renovados.
Para usar um número emblemático do livro Lutando Pelo Seu Casamento, o sucesso nesta tarefa aumentará em 93% suas chances de se encontrar, logo adiante, em um relacionamento mais feliz e mais apaixonante.
Referências:
1. Stanley, Scott; Markman Howard; Blumberg, Susan. Fighting For Your Marriage. Jossey-Bass Editora, 3ª ed., 2010, p. 8. Tradução: Juliano Nunes.
2. Stanley, Scott; Markman Howard; Blumberg, Susan. Fighting For Your Marriage. Jossey-Bass Editora, 3ª ed., 2010, p. 15. Tradução: Juliano Nunes.
3. Stanley, Scott; Markman Howard; Blumberg, Susan. Fighting For Your Marriage. Jossey-Bass Editora, 3ª ed., 2010, p. 91. Tradução: Juliano Nunes.
4. Stanley, Scott; Markman Howard; Blumberg, Susan. Fighting For Your Marriage. Jossey-Bass Editora, 3ª ed., 2010, p. 95. Tradução: Juliano Nunes.
5. Stanley, Scott; Markman Howard; Blumberg, Susan. Fighting For Your Marriage. Jossey-Bass Editora, 3ª ed., 2010, p. 96. Tradução: Juliano Nunes.
6. Stanley, Scott; Markman Howard; Blumberg, Susan. Fighting For Your Marriage. Jossey-Bass Editora, 3ª ed., 2010, p. 97. Tradução: Juliano Nunes.
Excelente abordagem, Ju. Tema mais do que necessário para casais, mas também com aplicabilidade em todas as esferas da vida.
Oi Ester! Tudo bem? Eu gosto muito desse tema. Enquanto pesquisava para o artigo, relembrava os conceitos e, simultaneamente, os colocava em prática. Isso é fundamental para aprendermos a identificar esse tipo de “movimento mental” em “tempo real”.
Especialmente para quem já está casado há “algum” tempo (como nós) é possível perceber, em retrospectiva, quantas vezes não fomos capazes de “entender direito” o que o outro estava dizendo e acabamos tornando as coisas mais difíceis do que já são.
Logo, logo publico sobre os dois últimos filtros. Abraço forte!
Texto rico Ju, a cada lançamento seu aqui sinto mais vontade de ler este livro. Está incluído na lista 2021. Abraço!
Tudo bom Cris? Mais uma vez, fico feliz que tenha gostado. Trabalhar com esse livro está me permitindo relembrar alguns conceitos e solidificar outros, todos muito importantes e eficazes. Recordar esse tópico dos filtros, por exemplo, já está reproduzindo efeitos concretos na minha comunicação com a Stephanie. Hoje mesmo, enquanto conversávamos pelo FaceTime (Você sabe que ela está em Denver?), eu percebi que estava interpretando negativamente um dos comentários dela a meu respeito. Imediatamente eu parei e sintonizei mensagem e intenção. A conversa, então, não só continuou tranquila como acabou sendo muito frutífera. Um grande abraço! Até breve!