Inquieta e Imprecisa Mente

“O Pensador” – Auguste Rodin

Você confia no que pensa?

Em condições normais, quase todos nós confiamos no que pensamos. Isto é, confiamos amplamente nos critérios de avaliação que utilizamos para lidar com os mais de 50.000 pensamentos que cruzam nossas mentes todos os dias.

Muitas vezes, porém, aquilo que pensamos está incorreto ou destoa flagrantemente da realidade. O cerne do problema é que nem sempre percebemos o erro. Assim, quando o equívoco envolve alguma questão relevante, talvez tenhamos que lidar, desnecessariamente, com consequências inesperadas e incômodas.

Como é possível, então, discernir em que pensamentos confiar? Valendo-nos de nossa capacidade de pensar para, tanto quanto possível, testar sua validade. Na verdade, nosso aparato cognitivo possui sofisticados mecanismos de testagem que, infelizmente, são em sua maioria desconhecidos ou subutilizados.

Há uma razão interessante que ajuda a explicar este fenômeno tão comum: as pessoas pensam que pensam, mesmo quando não estão propriamente pensando. O pensamento intelectual, racional e refinado é bem mais raro do que supomos.

1. Inquietos e imprecisos pensamentos

Cerca de 95% dos nossos pensamentos são apressados. Agem inquietamente e possuem roteiro próprio. Eles se formam por meio de uma análise rápida que contrasta as informações de momento disponíveis com as informações previamente acumuladas, seguida de uma conclusão preliminar (quase sempre sancionada).

Os outros 5%, porém, são mais demorados e percorrem caminho diverso. São operados por um sistema concatenado de passos que leva a conclusões e decisões mais refinadas. Esse caminho, contudo, é notadamente mais árduo e, por consequência, menos utilizado.

De fato, os estudos desenvolvidos no campo da psicologia cognitiva nas últimas décadas têm demonstrado que a massiva maioria dos nossos pensamentos são processados de modo muito mais automático, reativo e irracional do que gostaríamos de admitir.

Na realidade, nossas conclusões e decisões são frequentemente resultado não de um processo escalonado de ponderação e raciocínio, mas, sim, de um processo associativo involuntário que se vale de parâmetros previamente armazenados em nosso inconsciente.

Mas as fronteiras entre consciência e inconsciência, não importa a abordagem científica que adotemos, não são facilmente demarcáveis. Por isso, é muito comum confiarmos em conclusões e decisões que acreditamos resultar do intelecto, mas que na verdade resultaram de associações inconscientes projetadas na consciência sem que nos déssemos conta.

Todos nós já experimentamos as consequências (indesejadas) de atitudes precipitadas pautadas por julgamentos apressados e equivocados.

2. Economia do pensamento

Somos, em geral, muito econômicos quanto ao ato de pensar em sentido estrito (pensamento crítico). Embora nossas mentes trabalhem sem cessar, até mesmo enquanto dormimos, a maior parte dos nossos pensamentos chegam à superfície de maneira instintiva.

Nosso drama cognitivo começa quando, acomodados, permitimos que este sistema intuitivo comande pensamentos e ações que estão fora da sua alçada. Mas não somos cognitivamente mesquinhos sem razão. Na verdade, nosso sistema automático funciona muito bem a maior parte do tempo e, por isso, confiamos nele. Por isso é ele quem fica com as chaves dos pensamentos.

A prontidão e desembaraço funcional do nosso sistema automático de pensamento, além de sua função protetora, nos permitem tomar decisões e chegar a conclusões acertadas (na maioria das vezes) sobre inúmeras questões diárias de maneira ágil, eficiente e com pouco investimento de tempo e energia. Infelizmente, ele não está imune a falhas que, quando não corrigidas, ampliam nosso drama intelectual.

Nosso principal instrumento de correção das falhas do pensamento intuitivo é o pensamento crítico (pensamento em sentido estrito). É ele o responsável pelos refinados mecanismos de investigação, verificação e dedução que caracterizam a inteligência.

Foi precisamente esta relação temperamental entre o pensamento automático e o pensamento ponderado o ponto de partida do livro “Rápido e Devagar, Duas Formas de Pensar”, escrito pelo professor da Universidade de Princeton e doutor em psicologia pela Universidade da Califórnia, Daniel Kahneman. Seu trabalho no campo da economia comportamental, desenvolvido durante anos em parceria com seu colega e também psicólogo, Amos Tversky, lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia em 2002.

O detalhe curioso é que tanto Kahneman quanto Tversky não eram economistas por formação. Apesar disso, suas análises sobre determinados aspectos da economia à luz da psicologia cognitiva revolucionaram alguns conceitos, até então vigentes, da economia tradicional.

Economia Comportamental

A partir do final da década de 1970, os estudos relacionados à economia comportamental começavam a se destacar. Um dos objetivos da nova disciplina era descobrir porque certos comportamentos que pautavam as ações dos agentes econômicos não podiam ser explicados pelos parâmetros tradicionais.

A aparente irracionalidade destas ações intrigava os estudiosos. O descompasso entre teoria e prática acabava afetando negativamente o gerenciamento de riscos dentro das organizações, e desafiava economistas e psicólogos comportamentais, dentre os quais o condecorado professor e psicólogo Daniel Kahneman.

Em seu livro “Rápido e Devagar, Duas Formas de Pensar”, Kahneman retoma, amplia e defende a tese de que o nosso aparato cognitivo funciona em dualidade. Ele demonstra, ainda, até que ponto essa dualidade pode influenciar comportamentos no âmbito econômico (e em muitos outros).

Já nos primeiros anos da década de 1980, eram recorrentes (no campo da psicologia) as discussões envolvendo a existência de dois processos mentais distintos trabalhando juntos e alternadamente. Nas palavras de Marcos E. Pereira e Antônio Virgílio B. Bastos:

“A discussão sobre a existência de dois processos mentais, um evolutivamente mais antigo, e um segundo, mais recente, tem sido predominante na psicologia social, acarretando impacto em muitas áreas conexas de estudo. Uma série de modelos, com terminologias muito diversificadas, mas genericamente subordinados ao modelo dos processos duais, foi emergindo em vários domínios especializados da psicologia social, fazendo alusão a dois modos de processamento, um realizado com pouco esforço e de forma relativamente automática e outro mais cuidadoso e refletido.”1

A novidade apresentada por Daniel Kahneman e Amos Tversky foi a aplicação dos conceitos afeitos à tese da dualidade cognitiva ao campo da economia. Do encontro entre estas duas disciplinas, psicologia e economia, despontava a economia comportamental.

Ilusões Óticas e Cognitivas

Embora os experimentos realizados pelos dois psicólogos envolvessem inicialmente questões do campo econômico, os conceitos por eles estudados se mostravam de ampla e quase irrestrita aplicação. Como o próprio autor esclarece:

Grande parte da discussão neste livro é sobre as ‘tendências’ da intuição… A maioria de nós é saudável na maior parte do tempo, e a maioria de nossos julgamentos e ações, na maioria das vezes, são apropriados. À medida que caminhamos em nossas vidas, normalmente nos permitimos ser guiados por impressões e sentimentos, e a confiança que temos em nossas crenças e preferências intuitivas geralmente se justifica. Mas nem sempre. Muitas vezes estamos confiantes mesmo quando estamos errados…” 2

Para ilustrar o conceito da dualidade cognitiva, voltei à década de 90 e colhi algumas imagens muito populares à época. Elas eram chamadas de Magic Eye (Olho Mágico). Eu havia ganhado um livro com dezenas destas imagens surpreendentes.

Aquelas imagens criavam uma ilusão de ótica. À primeira vista, tínhamos apenas uma imagem plana, bidimensional, normalmente formada por padrões de cores estampadas. Mas havia mais a ser visto nelas. Cada imagem guardava escondido um desenho em 3D (três dimensões). Poderia ser um objeto, um animal ou um lugar; o certo é que ele estava lá.

Entretanto, para descortinar estas figuras e descobrir seu segredo, era necessário um pouco mais de esforço e atenção. O observador deveria, com uma postura relaxada, olhar fixamente para a imagem, como se estivesse querendo atravessá-la mentalmente. Algumas pessoas eram capazes de identificar o desenho escondido com mais facilidade que outras. Havia, ainda, os que desistiam após vários minutos de tentativas infrutíferas.

Como estamos diante de uma ilusão de ótica, somente nossa percepção visual está sendo desafiada. No momento em que estamos diante de uma ilusão cognitiva, todavia, é a nossa inteligência que é posta em xeque. Se a ilusão ótica atinge nossa visão, a ilusão cognitiva atinge nosso intelecto.

O que você vê nesta imagem? Várias flores de diversos tamanhos e cores, certo? Mas, e se eu te disser que nesta imagem bidimensional há algo mais? Que há, ainda, a imagem em três dimensões de um inseto alado?

Mas até que ponto é possível aplicar o conceito da dualidade cognitiva para enxergar melhor e perceber determinadas coisas não apenas em duas, mas em três (ou mais) dimensões? Até que ponto podemos depurar nossos pensamentos e tomar melhores decisões no ambiente de nossos relacionamentos afetivos e em todos os demais pelos quais diariamente transitamos?

3. Dois ou Um

A experiência humana é profundamente marcada pelo conflito frequente entre uma reação involuntária e o desejo de dominá-la. O simples impulso de verificar uma mensagem no celular e saciar nossa curiosidade é tão forte que consegue, por vezes, se sobrepor à nossa bem estabelecida noção de que tal gesto poderia provocar um acidente de trânsito de consequências imprevisíveis.

Quantas vezes, em discussões costumeiras, soltamos palavras que nos vêm à mente de repente e imediatamente percebemos sua evidente estupidez. Em certas ocasiões, serão necessárias centenas de palavras bem escolhidas para restaurar os danos causados por uma curta frase temerária.

Circunstâncias como estas tendem a confirmar a tese de que nosso palco cognitivo é mesmo dividido entre dois protagonistas de personalidades distintas que interagem intensa e continuamente. São os sistemas 1 e 2.

Em síntese, conforme demonstrado pelo professor Kahneman, o Sistema 1 é rápido e intuitivo. Regido pela lei do menor esforço, ele busca continuamente uma maneira de economizar energia. É como um gatilho pronto a disparar de acordo com os estímulos que percebe ao seu redor. Sua lógica própria, iniciativa e agilidade são vitais em situações de emergência ou perigo iminente.

Sistema 1: Dirigir por uma estrada vazia

Por outro lado, o Sistema 2 é mais lento e analítico. Sua ênfase está na ponderação. Assim, é seu o trabalho de exercer as funções de monitoramento e controle dos pensamentos e ações sugeridos pelo Sistema 1. Na maior parte do tempo, porém, somente uma pequena fração de seu exército cognitivo se mantem alerta.

Sistema 2: Estacionar em uma vaga paralela

Para demonstrar de maneira simples e didática os dois sistemas em ação, o professor Kahneman apresenta o seguinte exemplo:

É bem provável que você tenha percebido que a segunda operação demandou mais tempo que a primeira. As respostas também devem ter sido diferentes. Sua análise menos apressada e, portanto, mais ponderada, foi provavelmente a que chegou à resposta correta.

À medida que os estudos da psicologia cognitiva avançam, menos dúvidas restam sobre o caráter predominantemente automático de nosso processo decisório. Constantemente, aquilo que pensamos ser fruto de um processo racional de escolha é, de fato, resultado de uma sequência complexa de associações que se utiliza do vasto banco de dados armazenados em nosso inconsciente.

Nas palavras do professor:

“Quando alguém lhe pergunta no que você está pensando, você normalmente consegue responder. Você acredita saber o que se passa em sua mente, o que muitas vezes corresponde a um pensamento consciente seguido ordenadamente por outro. Mas a mente não funciona apenas dessa maneira…

Muitas impressões e pensamentos emergem em sua experiência consciente sem que você saiba como chegaram lá. Você não consegue apontar todos os passos que o levam a acreditar que há uma luminária na mesa à sua frente, ou como você detectou um tom de irritação na voz de sua esposa pelo telefone, ou como você foi capaz de evitar um acidente de trânsito sem ter plena consciência do que ocorria…

O trabalho mental que gera impressões, intuições e diversas decisões ocorrem silenciosamente em nossa cabeça. 3 (Tradução: Parlatorium Online)

Convém destacar que embora as ações do Sistema 1 sejam automáticas, seus movimentos não são necessariamente simples. Apenas seguem um roteiro diferente. Na verdade, muitos de seus padrões de ação são extremamente complexos e podem avaliar incontáveis informações de modo tão veloz que não somos capazes de perceber.

Neste equilíbrio dinâmico, o Sistema 2 é responsável pelas ações ordenadas e deliberadas. Somente suas avaliações ponderadas podem refutar os impulsos associativos, nem sempre elogiáveis, que vêm do Sistema 1.

4. Ilusões ‘Quase’ Indomáveis

Dentre as inúmeras perguntas que as pessoas fazem ao professor Daniel Kahneman em todos os eventos dos quais participa, uma delas é, sem dúvida, a mais recorrente:

– “Como as ilusões cognitivas podem ser dominadas?”

Sabemos que cada sistema emprega regras próprias de inferências quando precisa apresentar conclusões coerentes diante de determinada situação. O Sistema 1, de maneira ágil e automática, buscará padrões semelhantes e apresentará aquela que parece (e que na maioria das vezes será) a melhor solução. Na mesma situação, se o Sistema 2 estiver alerta, fará as seguintes perguntas:

“Será que é isso mesmo?” – “Será que entendi bem?” – “Será que não há uma melhor opção?”

Assim, se as impressões, crenças e opiniões concebidas pelo pensamento intuitivo (Sistema 1) não forem desafiadas ou colocadas à prova pelo pensamento crítico (Sistema 2), serão percebidas com ares de certeza. A partir daí, fecham-se as portas para o confronto cognitivo entre os dois sistemas, embate indispensável ao que chamamos de pensamento crítico.

Veja como o professor Kahneman lida com a questão:

“A pergunta que se faz com mais frequência sobre as ilusões cognitivas é se elas podem ser dominadas… Como o Sistema 1 opera automaticamente e não pode ser desligado a seu bel-prazer, erros do pensamento intuitivo muitas vezes são difíceis de prevenir. Os vieses nem sempre podem ser evitados, pois o Sistema 2 talvez não ofereça pista alguma sobre o erro.

Mesmo quando dicas para prováveis erros estão disponíveis, estes só podem ser prevenidos por meio do monitoramento acentuado e da atividade diligente do Sistema 2. Como estilo de vida, porém, a vigilância contínua não seria agradável e, certamente, seria algo impraticável.” 4

Apesar disso, o professor nos ensina:

“Questionar constantemente nosso próprio pensamento seria extremamente tedioso, e o Sistema 2 é vagaroso e ineficiente demais para servir como um substituto para o Sistema 1 na tomada de decisões rotineiras. O melhor que podemos fazer é um compromisso: aprender a reconhecer situações em que os enganos são mais prováveis e nos esforçar para evitar enganos significativos quando há muita coisa em jogo.” 5

O dilema, portanto, permanece, mas pode ser enfrentado por meio da vigilância intensa, conscientização e treinamento. É possível aprender a identificar as áreas em que nossos enganos são mais frequentes (ou mais prováveis) e, então, com atenção e esforço, adotar as medidas cognitivas necessárias para corrigi-los quando for possível.

Definitivamente, deixar o Sistema 2 meio desligado o tempo todo não me parece uma ideia razoável. Nesse estado, sua habilidade cognitiva é quase inexistente, e ele poderá acabar chancelando uma frágil resposta oferecida pelo Sistema 1, mesmo que ela deixe a desejar, ou pior, esteja inteiramente equivocada.

5. Boliche ou Netflix

Embora seja mais fácil reconhecer os equívocos cognitivos cometidos pelos outros, como assegura o professor Daniel Kahneman, a compreensão e aplicação da tese dual dos sistemas em nosso cotidiano pode promover mudanças construtivas e ajustes proveitosos em nossa maneira de ver e entender as pessoas e as circunstâncias.

Hoje já se sabe que a duplicidade cognitiva se manifesta em praticamente todas as áreas da nossa vida. Por esta razão, tanto o conceito geral da tese quanto sua fenomenologia podem funcionar como referências didáticas para o aperfeiçoamento da comunicação nos relacionamentos afetivos.

O exemplo inicial da “bola e do bastão” nos mostrou que, quando estamos diante de questões de ordem exata, como a matemática, o erro pode ser identificado com certa facilidade.

A história ganha contornos mais dramáticos quando nos deparamos com questões humanas, marcadas sobretudo pela subjetividade. Nesses casos, os erros ou acertos são, além de relativos, bem menos evidentes. Na realidade, vários equívocos só são percebidos quando tropeçamos nos efeitos indesejados que porventura tenham provocado.

Foto: CottonbroPexels

A esta altura, resta evidente que nossas percepções e atitudes no ambiente conjugal também sofrem interferência contínua destas duas maneiras de pensar. O diálogo real, resgatado de um artigo anterior – Ouça Bem ou Só Ouvirá o Que Convém – ilustra bem como as enraizadas crenças e expectativas que alimentam o Sistema 1, afetam a interpretação daquilo que ouvimos e percebemos.

Alex e Helen estavam tendo problemas para decidir o que fariam juntos quando tivessem um tempo livre. Eles chegaram a um dos seminários promovidos pelo Centro de Estudos Conjugais e Familiares da Universidade de Denver, para tentar entender e superar aquele insistente impasse.

Como na maioria das vezes não conseguiam chegar a um acordo, acabavam ficando em casa. Assim, os sentimentos de distanciamento e frustração ganhavam cada vez mais espaço na vida do casal.

Na conversa a seguir, observe como as impressões instintivas (engatilhadas pelo Sistema 1) entram rapidamente em cena, sem que o Sistema 2 tenha sido “consultado”:

“ALEX: (querendo muito sair para jogar boliche, mas imaginando que Helen não estaria interessada em sair e fazer algo divertido juntos). – Nós temos um tempinho livre esta noite. Talvez devêssemos sair e fazer alguma coisa.

HELEN: (pensando que não seria má ideia dar uma volta, mas ao perceber a hesitação na voz de Alex, deduz que ele na verdade não quer sair). – Ah, eu não sei. O que você acha?

ALEX: – Bom, nós poderíamos sair para jogar boliche, o problema é que se for noite de campeonato, pode ser que nem consigamos entrar. Talvez fosse melhor ficar em casa e assistir algum programa na Netflix (“TV” no original).

HELEN: (pensando: eu sabia, é isso que ele quer fazer na verdade). – Por mim tudo bem. Por que não checamos o que está passando? Quem sabe não encontramos algo interessante?

ALEX: (sentindo-se desapontado ele pensa: Eu sabia. Ela não quer nem se dar ao trabalho de sair para fazermos alguma coisa divertida). Por mim tudo bem.” 

Poucas sentenças são suficientes para percebermos que estamos diante de um legítimo (inconsciente e perigoso) processo de adivinhação de pensamentos (mind reading). Em ocasiões como esta a “opinião” do Sistema 1 é normalmente acolhida, pois se trata de algo trivial que, em tese, poderia dispensar o “auxílio” do Sistema 2. Esta é uma das razões pelas quais os mal-entendidos em conversas de casais são tão frequentes.

As distorções são flagrantes. Alex parte do pressuposto (Sistema 1) de que Helen não é muito de sair, e isso dita seus passos subsequentes na conversa. O que ele não imaginava é que naquela noite Helen estava a fim de sair (fato que poderia ser identificado pelo Sistema 2 se, intencionalmente, sua atenção e esforço fossem mobilizados para a tarefa).

Do outro lado, Helen também supõe (Sistema 1) que Alex quer, na verdade, ficar em casa e assistir televisão. Bastou uma suposta hesitação do marido para que Helen formasse sua opinião. Mais uma vez, o desavisado e adormecido Sistema 2 não identificou o erro da suposição e ratificou a percepção preliminar.

É bem verdade que nossos palpites quanto ao que o outro está sentindo ou pensando muitas vezes se confirmam. Mas é também verdade que, infelizmente, muitas vezes nos equivocamos completamente, acreditando ter acertado (Sistema 1). Nestes casos, um flanco é aberto para discussões e ressentimentos que teriam sido satisfatoriamente examinados com a paciência e franqueza de uma boa conversa (Sistema 2).

Por isso, quando queremos evitar discussões e ressentimentos desnecessários, o melhor caminho é superar o imediatismo da situação, acalmar os ânimos e iniciar uma conversa atenta e inteligente através da qual o interesse genuíno pela intenção do outro protege o casal de prejulgamentos desinformados.

Impressões imediatas continuarão a existir, pois não podemos desligar o Sistema 1, que tem atuação intermitente. Contudo, a trégua tempestiva impedirá que o crivo do Sistema 2 seja irrefletido, pois a ligeira e preliminar sugestão do Sistema 1 só será confirmada após as devidas considerações.

6. Conclusão – Refinamento Cognitivo

Sem dúvida o tema é complexo. Primeiramente, porque o funcionamento da mente humana, mesmo com todas as descobertas no campo da psicologia cognitiva e da neurociência, segue nos desafiando com seus mistérios. Em segundo lugar, pela influência de inúmeros fatores subjetivos com os quais cada um de nós precisa lidar intimamente.

Contudo, essa complexidade não nos impede de fazer o que está ao nosso alcance. Pesquisadores como Kahneman e Tversky acreditam que é crucial o desenvolvimento de habilidades (intelectuais e emocionais) se queremos ampliar nossos horizontes cognitivos.

Esse refinamento cognitivo pode ser alcançado por meio da prática contínua de nossa atenção e percepção. Neste processo, ampliaremos o conhecimento de nós mesmos e, também, daqueles que estão à nossa volta. Por fim, esse conhecimento nos capacitará a tomar melhores decisões e a formar opiniões mais confiáveis, consideradas as circunstâncias em particular.

Se por um lado não somos capazes de sustentar nossa atenção plena ininterruptamente, por outro podemos decidir que circunstâncias merecem integral concentração.

Vigiar para pensar – Pensar para proteger

À luz do que avaliamos até aqui, é possível inferir que se no seu relacionamento conjugal ou afetivo as discussões tendem a sair do controle, dificultando o entendimento, há boas chances de que ambos estejam se deixando levar pelas respostas rápidas, imediatas e irrefletidas do Sistema 1.

É absolutamente necessário um ato firme de vontade e disposição se queremos pensar melhor. Pensar de verdade! Não apressadamente como normalmente pensamos, mas paulatina e ponderadamente toda vez que estivermos diante de alguma situação (típica ou atípica) que mereça de nós mais prudência e raciocínio.

Se nos próximos dias, durante alguma discussão com seu marido ou esposa, você perceber que a conversa está saindo dos trilhos, experimente parar e ponderar. Pare, pacientemente, para pensar e ponderar os fatos.

Somente depois de analisar a situação com um olhar mais atento, exponha suas conclusões com genuíno interesse de entender o que está se passando. Não se trata de mera retórica. Se você parar e pensar (refletir sinceramente), acredite ou não, muitas coisas podem mudar!

Por fim, para reflexão, uma frase forjada com sabedoria pelo professor de psicologia da Universidade de Toronto, Jordan Peterson:

“As pessoas pensam que pensam, mas isso não é verdadePensar é escutar a si mesmo. É difícil. Para pensar, você precisa ser pelo menos duas pessoas ao mesmo tempo. Então, precisa permitir que essas pessoas discordem. O pensamento é um diálogo interno entre dois ou mais pontos de vista diferentes sobre o mundo.6

Concisa e Finalmente

A figura abaixo nos apresenta 4 pistas do funcionamento de cada um dos sistemas. Por elas é possível, na maioria das vezes, saber se determinada resposta ou impressão veio do Sistema 1 ou do Sistema 2. Se percebermos que a resposta foi rápida e rasteira, poderemos inferir que se originou no Sistema 1. Por outro lado, não havendo nenhuma resposta automática disponível, ao Sistema 2 caberá a apuração; o pensamento crítico será nosso último recurso.

Muitas vezes, identificar a imprecisão de uma resposta intuitiva só é possível se identificarmos em que situações os erros são mais frequentes. Nestas hipóteses, deveremos conscientemente confrontar a sugestão espontânea do Sistema (1) e submetê-la ao crivo da razão do Sistema (2).

Nesta dinâmica, nosso maior desafio é questionar a resposta automática proveniente do Sistema 1 quando (1) entendermos que a questão posta diante de nós é importante e vale à pena ser melhor avaliada, ou quando (2) desconfiarmos, ainda que sutilmente, do resultado encontrado de imediato. Do contrário, o Sistema 2 dará por encerrada a questão e confirmará a primeira impressão como a mais razoável. A partir daí, detectar e corrigir o equívoco se torna muito mais difícil, pois você acreditará (pensará) que examinou (pensou) o suficiente.


Referências Bibliográficas:

1. Pereira, M. E. e Bastos, A. V. Cognições Sociais: Uma Introdução, 2014. Revista Brasileira de Psicologia, 01 (02).

2. Kahneman, Daniel. Rápido e Devagar, Duas Formas de Pensar, 2011, Edição do Kindle, p. 10.

3. Kahneman, Daniel. Rápido e Devagar, Duas Formas de Pensar, 2011, Edição do Kindle, p. 10.

4. Kahneman, Daniel. Rápido e Devagar, Duas Formas de Pensar, 2011, Edição do Kindle, p. 33.

5. Kahneman, Daniel. Rápido e Devagar, Duas Formas de Pensar, 2011, Edição do Kindle, p. 33.

6. Peterson, Jordan B. 12 Rules for Life, 2018, Random House of Canada. Edição Kindle, p. 293. Tradução: Parlatorium Online.

1 Comment

  1. Cristiano Ledo

    Ju, que texto ótimo, um deleite para o exercício do “sistema 2”.

    Este tema muito me interessa, inclusive gostaria de instigá-lo a pesquisar sobre duas outras questões, as quais, apesar de presentes na área de exatas, tem relação direta com o tema.

    A primeira delas, da Ciência da Computação, refere-se à IA: Inteligência Artificial. Os conflitos éticos e os riscos que corremos tem sido alertados por estudiosos importantes sobre este avanço da tecnologia. E um dos motivos diz respeito exatamente aos sistemas 1 e 2 tão bem apresentados por você nesse estudo feito a partir da obra do Prof. Dr. Daniel Kahneman. Imagine o que poderá acontecer quando, num futuro não distante, tivermos complexos algoritmos e poderosos motores de inferência, baseados em redes neurais, que emulam o cérebro humano, alimentados por massas absolutamente gigantescas de dados acerca do comportamento humano. Essas bases de dados vem crescendo absurdamente no mundo pós-internet, sobretudo com o avanço das redes sociais etc. Tais sistemas, cérebros artificiais, serão capazes de tomar decisões, isto é, processar toda a cadeia do pensamento, com a ponderação e profundidade do “sistema 2”, porém bilhões de vezes simultâneas e em frações de segundos, ou seja, com a velocidade do “sistema 1”. Isso já está acontecendo debaixo do nosso nariz, precisamente nos Smartphones, e não estamos percebendo. Em outras palavras, o que ocorrerá quando esses seres pensantes, artificiais, entregarem resultados tão precisos compatíveis com o “sistema 2”, porém na velocidade do “sistema 1”? Por ex. imaginemos uma análise jurídica, um diagnóstico médico, um projeto de engenharia, ou até mesmo uma obra de arte como uma pintura, escultura ou música, ou poema, com a mais profunda e perfeita análise e resultado produzido, em segundos ou frações de segundos.

    A segunda questão nos leva para a Bioquímica. Tem sido aplicada também em estudos que envolvem a Biotecnologia, isto é, área da Computação que busca soluções híbridas, técnico-orgânicas, aplicações de hardware, software (algoritmos), dentre outros recursos, aliados a organismos vivos ou reações químicas com auxílio da Biologia, Neurociência, Ortopedia, Engenharia de próteses etc. Nestes estudos, o próprio livre arbítrio tem sido posto em cheque. Se o sistema 1 e 2 de pensamento, rápido e devagar, são nada mais que uma complexa cadeia de decisões, baseada num algoritmo que considera as memórias (experiências), cultura, crenças, hábitos, instinto etc., e o meio de comunicação das fases deste processo é um mais complexo ainda emaranhado de sinapses eletroquímicas, então, por meio das tais sinapses e eletroquímica, é possível manipular o pensar. Isso pode ser um avanço incrível, tal como implantar uma prótese artificial em substituição a um membro amputado, de forma que o cérebro do paciente controle a prótese como uma extensão natural do seu corpo, inclusive sensível ao mais sutil estímulo de uma cócega, mas também uma perigosa ferramenta para manipular o pensar, induzindo o resultado desejado por meio do controle eletroquímico, por ex. por nano robôs agindo como medicamentos na corrente sanguínea. Isto também está acontecendo sutilmente, aqui e ali, sem que percebamos as consequências que poderemos ter. Como exemplificado num dos livros do Harari, o Viagra foi desenvolvido com um objetivo diferente daquele que acabou se tornando o sucesso da aplicação desta droga. O que impedirá então que super próteses não sejam requisitadas em substituição a membros, mesmo em não amputados, quando esses recursos se tornarem tão perfeitos quanto os membros orgânicos, porém ainda superiores, pois não adoecem, aplicam maior força etc.?

    Forte abraço.

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